Pesquisar

Historial

122 - Lisboa Famosa (portuguesa e milagrosa)

Lisboa Famosa (portuguesa e milagrosa)

 


Uma mistura de cenas de diferentes Autos quinhentistas e seiscentistas que, um pouco como o pot-pourri de cenas de Aristófanes, A CIDADE, que levámos à cena no S. Luiz, falam da vida social da cidade, neste caso a nossa cidade de Lisboa. Devolvendo ao palco o que os investigadores recuperaram faremos textos de: Gil Vicente, Anónimos, Baltesar Dias, Afonso Álvares, etc. Santos populares e milagres de Santo António, fado, sardinha assada, porto de mar, com gente de todo o mundo, mas também terra dos corvos de São Vicente, dos terremotos, da fome e da mentira e corrupção.

Espectáculo leve, brincado, uma brincadeira ligeira que pode ser uma óptima introdução ao português antigo e à primeira fase do teatro português. Será acompanhado por escolas e numa acção de formação devidamente contextualizada.

 

12 de Fevereiro a 15 de MarçoTeatro do Bairro Alto, Lisboa

Terça
 a sábado às 21:00hDomingo às 16:00h

 Ensaios abertos: 24 de Janeiro e 7 de Fevereiro às 15:00h

M/12



Ficha Técnica

 

LISBOA FAMOSA (PORTUGUESA E MILAGROSA)

Cenas lisboetas de autos quinhentistas

 

A partir da edição do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras de Lisboa online do teatro de autores portugueses do século XVI, dirigida por José Camões.

 

Cenas de:

Gil Vicente, Auto da Fama

Anónimo, Auto dos Sátiros

Anónimo, Auto das Padeiras

Baltesar Dias, Auto de Santa Caterina

Afonso Álvares, Auto de São Vicente

Afonso Álvares, Auto de Santo António

Gil Vicente, Auto da Festa

eexcertos de:

Vida de Santo António na tradução portuguesa de Franco Barreto da Flos Sanctorum de

Pedro Ribadaneyra

Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285)

O “serventês” Vej’eu as gentes andar revolvendo, de Pero Mafaldo

e algumas frases acrescentadas emensaios como:

A verdade é sempre a melhor opção.

E assim se faz um palimpsesto.

Não tenhas medo que não dói.

Parvoíces…é como quando se escreve por cima do que já está escrito

 

Encenação, adaptação e escolhas musicais Luis Miguel Cintra

Cenografia e figurinos Cristina Reis

Desenho de luz Cristina Reis, Luis Miguel Cintra e Rui Seabra

Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos

Director técnico Jorge Esteves

Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo e Abel Duarte

Montagem e Operação de luz e som Rui Seabra com João Paulo Araújo e Abel Duarte

Guarda-roupa e conservação do Guarda-roupa Maria do Sameiro Vilela

Costureiras Maria do Sameiro Vilela e Teresa Balbi

Assistente de Produção Tânia Trigueiros

Secretária da Companhia Amália Barriga

Cartaz Cristina Reis

 

Interpretação

A Ventura, Mãe de Santa Caterina, Isabel Vaz, Marta Dias, Caterina Tisnada, Mãe de Santo António Ana Amaral

O Italiano, um Vilão, Graciana, um Rascão, Palurdão, Santo António Guilherme Gomes

O Moço, Sátiro, Irmitão, Pero Casco, um Rascão, Calcamar, João Pires Isac Graça

O Mordomo, o Porteiro, o Cidadão, o Anjo, o Centeio José Manuel Mendes

O Francês, o espanhol, Jan’Afonso, o Milho Luís Lima Barreto

Pero D’Abreu, o Diabo, Gonçalo Macho Luis Miguel Cintra

A Fama, Santa Caterina, Lucinda, a Fome, Isabel Botelha Rita Cabaço

A Verdade, Branc’Anes Rita Durão

Joane, um parvo, um Menino Morto Silvio Vieira

A Cidade de Lisboa, a Velha Sofia Marques

 

Música

No espectáculo ouvem-se 3 canções completas: Una Casa Portuguesa, versão espanhola de Jorge Sepúlveda de Uma Casa Portuguesa; os fados Lisboa Antiga, cantado por Amália Rodrigues e Veio a Saudade por Carlos Ramos; a peça para guitarra de Carlos Paredes Canção para a Titi e trechos de guitarradas, marchas várias.

Também se ouve Espelho d’Água do grupo Santamaria, Falar de amor da dupla Miguel e André, e o início da versão oficial online do Hino Nacional.

 

 

LISBOA FAMOSA (PORTUGUESA E MILAGROSA) (3h00)

Cenas lisboetas de autos quinhentistas portugueses

 

PRIMEIRA PARTE (1h45m)

1. A PORTUGUESA E OS OUTROS

2. A CIDADE EM REVISTA

3. TEMPOS DIFÍCEIS

4. A VELHA CIDADE DO CORAÇÃO (CHEIA DE ENCANTO E BELEZA ou DAS DESILUSÕES DE AMOR?)

 

INTERVALO (0h15m)

 

SEGUNDA PARTE (1h00)

5. O MILAGREIRO DA NOSSA DESGRAÇA

6. A FESTA DO SANTO ou O SONHO DO MILAGRE

7. SAUDADE VAI-TE EMBORA

 

Apoio CML

 

Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 12/02 a 15/03/2015
28 representações

 

Estrutura financiada por Secretário de Estado da Cultura/Direcção Geral das Artes

 

Este Espetáculo

 

1.

Volta-me agora à cabeça muitas vezes o princípio do VAT 69, esse tão lindo poema de Ruy Belo que, como diriam cabeças mais arrumadas, tão bem mistura alhos com bugalhos: “Era depois da morte Herberto Helder”. Nunca o entendi bem, nesta ainda vontade minha de tudo clarificar, de tudo dominar com o pensamento, e de considerar que tudo se opõe ao seu contrário, que a vida se opõe à morte, que estar morto é o contrário de estar vivo, e que um vivo não está morto. Mas julgo que começo a finalmente entendê-lo. E não julgo que seja por já pensar muito na morte, como aos outros costuma acontecer mais tarde. É mais porque julgo que afinal aquele verso me descreve, conta a minha maneira de pensar. E porque é no pensamento que cada vez mais se fecha o meu viver. Morrer é ver a vida de longe. “Depois da morte” só é circunstância de tempo porque depois de viver costuma vir morrer. Mas é mais um lugar. Como o Wenceslau de Morais de Paulo Rocha dizia à menina japonesa numa das sequências no Japão de A Ilha dos Amores: “Watashi nô Shinikata takusan ni arimass” (Eu tive muitas mortes, em transcrição fonética, que foi como aprendi e não esqueci).

É engraçado, descubro que é com os poetas que sempre dialogo, como se naquele refazer e desfazer do discurso humano que os caracteriza, da “palavra”, melhor a avaliassem, e ao trabalhá-la saltassem fora do tempo e tudo transformassem em “vanitas”, e assim ganhassem segurança contra a angústia de ter consciência do Tempo, saltando para fora da vida, ou fazendo da vida esse constante ver de todos os pontos de vista, como os cubistas começaram a pintar. Para vencer o Medo? Sim, claro. Mas o que eu queria, mais do que isso, era tudo transformar em Alegria, como julgo que acontecia com o Ruy também. Aliás a pintura cubista não me lembro de que seja triste.

Os actores são parecidos. Talvez por isso, representar mesmo, como quem é artista, às vezes demore tanto tempo, e exija disponibilização. E se sofra. Às vezes receio estar a tornar-me em Irma, a dona da Varanda do Genet, ou seja, o bordel, a casa das metáforas, onde trabalham as putas, uma maneira de matar a vida, para ter a vertigem de mais conhecer. Não sei, o que é certo é que é no teatro dos poetas que vejo espelhos do teatro propriamente dito e é ele que me traz consciência da vaidade, dos dias como estéril busca de uma síntese, um conhecimento da vida que me acompanhasse e me ajudasse a viver. E também não acho as “Vanitas” quadros tristes, são valorizações do que perece e que só se for atraente se entende que nos possa fazer esquecer a verdadeira Alegria.

No teatro que tenho feito são também dois grandes poetas e não escritores de ficção nem ensaístas, os autores que foram mais importantes para mim, e os que, estou convencido, me deram maior experiência de vida: Genet e Pasolini. Dois gigantes da solidão. Genet afundando-se voluptuosamente na vertigem abstracta deste sentimento mortal. E Pasolini sofrendo até às últimas consequências a tragédia de uma luta pelo apego ao real que no nosso tempo dificilmente se consegue. Tenho-me lembrado da sua abjuração da Trilogia da Vida e da sua resposta com o Saló. Para os que não sabem, são filmes que aconselho.

Mas no meu dia-a-dia os poetas que tornei em companheiros são 3 pessoas que conheci e que morreram, mais um fantasma: o Ruy, a Sophia, o fantasma de Camões e a Luiza (Neto Jorge). Por causa desta vontade de conhecer a vida e a prezar tanto, coisa que não aprendi com Manoel de Oliveira, mas que também nele fui encontrar. Com o Ruy nem dialogo, coincido. Fala só de coisas que conheço e com a mesma ansiedade na respiração, o mesmo gosto de nunca esquecer o vivido concreto e quotidiano, popular, de olhar com olhos de ver para o que não tem importância nenhuma e se colocar “depois da morte”. Um certo amor antigo ao povo. Vamos mais longe, aos pobres. Queríamos ambos que tivéssemos o fôlego das falas que os pobres dizem e que gravámos na memória. Reconheço no fôlego difícil das frases do Ruy, que o lugar donde se tece aquele fluxo de palavras talvez pudesse coincidir com o meu. Têm o mesmo tamanho as nossas frases, mesmo que eu fosse incapaz de me lançar ao mar de Vila do Conde em pleno Inverno, e aquele corajoso ingénuo o tivesse mesmo feito. A Sophia é outra coisa, é o espanto diante da vida, como se quisesse ser o fogo com que Deus escreveu nas tábuas de Moisés. Foi antes da nossa Era, e o tempo pede, o tempo manda que se escrevam no momento em que o sol dá luz ao mar. Coisa que acontece quase todos os dias, e mais na Grécia que na praia da Granja, e mesmo assim foi lá que Sophia, ainda nova, viu Homero. Camões é a matriz destas interrogações sobre a relação das artes com a realidade, não por “gosto do louvor mas explicando puras verdades já por mim passadas.” Sim, duas das abstracções mais frequentes na poesia de Camões são alegorias deste nosso espectáculo: a patética Ventura, em Camões também chamada Desventura ou Fortuna, uma personagem de Circo, e a Verdade, à procura da terra de ninguém onde ela gostaria de habitar para ser o nome que lhe deram mas não é. Afinal é pequeno o espaço de tempo que vai dos dias em que se escreveram estes autos aos dias de Camões. Mas, quanto a mim, gostava muito mais de me sentir mais parecido com a Luiza, com muito mais humor e humildade ou fraternidade com um mundo que talvez não precise de metafísicas. Ela nunca precisou de sair do seu corpo para pensar, viu sempre o mundo dos outros à janela do lugar que eles estavam. Rir-se-ia à gargalhada lendo prosa tão pretensiosa como esta. O Manuel João Gomes, a seu lado, poderia acrescentar em latim, com ironia: “suum cuique”. (“a cada um o seu”). E acertava, calculem!, no lema do brasão da minha família Lindley, nome que, chegados à minha geração, a lei civil já me tirou e deitou para o lixo. Mas isto não interessa nada, é cansaço de levar tudo tão a sério.

Já viram o tempo que perco nisto, a que passatempos me dedico?

Hoje em dia, pegando numa ponta qualquer, a partir de qualquer coisa me ausento e vou dar a volta ao mundo imaginado como país das maravilhas, como o actor Isac lhe chama, e ele tem razão, mas se calhar é por um buraco em que se cai que se vai lá dar e não de Montgolfière, que às vezes era o que apetecia, para sair do beco triste da nossa terra. E volto dessa ausência mais satisfeito, a pensar que sei mais do que sabia. Calculem! E imagino, mais do que estou, que estou sempre a discutir com vários amigos cuja opinião não deixa nunca de me importar e que são aqueles espectadores meus irmãos que tomo como o meu público, mesmo que uns não sejam público, mas estão comigo, outros nem público sejam nem quase nunca comigo estejam: a Cristina, a Christine, a Ana Zamora, dois outros que ficaram para sempre e volta e meia procuro, o Jorge e a Eduarda, e outros dois que me dividem a vida em dois, como Deus e o Diabo, e que, como eles, trocam de papel, e me definem: o João Paulo e o Tolentino que metafórica e permanentemente me poem a andar de Herodes para Pilatos. Depois há lá no fundo dos bosques, dois eternos rapazes, o Joaquim e o Nuno, que me trocam as voltas, e que, à hora a que escrevo, não sei que tropelias andarão a fazer. Pois, tudo artistas. Boa gente? Gente que também não vê a vida do lugar de toda a gente.

 

2.

Mas que é isto? Que digo eu? E o resto do mundo, o mundo da casa e da rua da Luiza Neto Jorge, a Rua da Misericórdia a que ela chamou rua do Mundo? Lisboa, uma cidade famosa e que talvez criminosamente mandei ser metáfora de uma cidade qualquer, ou até do mundo inteiro, que tornei em título de uma artificiosa colagem de farrapos e se tornou numa complexa casa de bonecas? Ou de bonecos. Tenho o direito de me pôr fora da vida com o pretexto de que a quero conhecer?

É feio fazer uma lista de amigos, a quem peço perdão de envolver nisto, mas não quis fazer nenhuma ierarquia, nem um portfolio de notáveis, é porque tenho gosto de os nomear (É bom dizer um nome próprio.) e para não estar sozinho neste meu cabecear a ruminar conversas e para ficar escrito que para mim estes ficaram do mesmo lado que eu, sim, mas sobretudo para dizer que o espectáculo que vão ver é o retrato da cabeça de um louco sentimental que, como se nota neste espectáculo, julga ter o direito de se pôr depois da morte, a ver a vida já distante e a recapitular. Como se fosse isto a Filosofia ou a Fé, preso ao mais odioso dos pontos de vista, o de quem, afinal estupidamente pouco espera da vida e se julga no direito de a interpretar, explicar, manipular, em vez de se convencer que é agir que conta. Deixar-se sangrar como os outros. E arrastando outros consigo. Um amigo nosso, que passou a vida a acudir a fogos, e num momento de aflição, também se prestou a ser tábua de salvação deste teatro, como de tanta outra coisa e que morreu muito novo há pouco tempo, o Maçariku, da Casa da Achada, sem dar espectáculo de filosofia nenhuma, fez o que não consigo fazer: viver dentro da vida. E talvez por isso o seu luto tivesse de ser diferente. Daqui, de depois da morte, o abraço.

É verdade, nos dias que vivemos, em que o mundo quase rebenta com a pressão do fim que dentro de si já arde e com a crescente violência reaccionária (e não me refiro aos assassinos dos jornalistas franceses, nem aos excessos mediatizáveis de alguns carrascos, refiro-me à arrogância dos que confundem poder económico com direito à liberdade, ou dos que parecem indignar-se em nome da Vida, como se aquela sociedade de Mercado que para eles é vida, não fosse a morte de tantas vidas, não fosse a negação de cada um ser mesmo o que o faria feliz, coisa que em muitos casos , talvez mesmo fosse só comer). No pacote da Democracia europeia, também pensaram que estavam a comprar a sua própria Liberdade. Mas foi a sua própria morte e a dos outros o que afinal compraram. E veio o medo por arrastro. Os direitos não são medidas de segurança. A Democracia não é uma companhia de seguros.

 

3.

A Ana Amaral, actriz neste espectáculo, um dia destes e inesperadamente, como se fosse uma das cartas do Tarot que pusemos nas mãos da sua Ventura, lança-me para o meu Outlook as redondilhas de Camões ao desconcerto do mundo porque lhe tinham feito lembrar uma coisa que eu tinha dito no ensaio da véspera:

 

Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E, para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que, só para mim,
Anda o mundo concertado.

 

Pois é. É verdade sim, falamos também do “desconcerto do Mundo”. Mas quem tem direito a saber o que seria o Mundo concertado? Que é o que deixo que me diga o que é bem ou mal? E é disso também que Camões fala.

Fez-me bem. Logo continuei as redondilhas com a ultima oitava A Dom António de Noronha (E lembrei-me do Frederico Lourenço e de como a partir de umas trovas se pode escrever um romance, neste caso o Pode um desejo imenso):

 

Fortuna, enfim, co’o Amor se conjurou
Contra mim, porque mais me magoasse:
Amor a um vão desejo me obrigou,
Só para que a Fortuna me negasse.
A este estado o tempo me achegou,
E nele quis que a vida se acabasse;
Se há em mim acabar-se, que eu não creio;
Que até da muita vida me receio.

 

O que me vale, para me não perder em estéreis abstracções, na permanente dialética da relação eu/mundo, ou seja, eu e os outros, e perante o desconcerto em que vivemos, o que me tem valido, é o vão desejo que tem sido a minha vida. Desejo e curiosidade dos outros, da sua carne, da sua pele, do que de único cada coisa ou pessoa tem, do contrário do que nos unifica, ou massifica. As asneiras que por excesso tenho feito! E tudo tem de começar por uma coisa tão simples, e que é o contrário de legislar: descobrir. A justiça só é necessária porque não há amor ao outro, às coisas e aos seres vivos. E como há-de haver se para que haja a tal Democracia tem de haver uma massificação dos seres humanos, uma obediência ao padrão de comportamento que permite pôr a máquina do dinheiro a funcionar?

 

4.

Estou convencido, e apenas pela prática de vida, que a grande defesa da felicidade não se pode fazer já pelo que nos é comum, anulando a diferença: a igualdade é perversa. É justamente pela construção da fraternidade que acredito que o desconcerto vai mudar. Conseguindo para cada um o oposto do desejo de poder. O oposto do dinheiro como unificador do valor, o oposto do preço. Ora vejamos: o petróleo necessariamente vale pouco para uma população que não usa máquinas como um bem essencial. Não tem valor. Dá-se lhe um preço. E o petróleo deixa de ser petróleo, passa a ser uma coisa que não é material: o seu preço. Para que a transação seja possível, temos de lhes dar uma coisa que para eles não tem valor: o dinheiro. O dinheiro não existe, é um sinal de troca que não em géneros. E com o dinheiro vai tudo. O dinheiro contribui portanto para um funcionamento que substitui as coisas não já por palavras, mas sim por um número, a matéria das coisas corresponde apenas a algarismos que se organizam entre si hierarquicamente sem terem a ver com nenhuma realidade palpável. Mas nem vale a pena meter-me por aí.

O que sei é que é nestas coisas que penso agora quando faço espectáculos. Não penso que tenho uma Missão, não. Ninguém me passou o recado. E quem acredita ter influência sobre alguém? Competir com o Big Brother? Penso, afinal desde há já muito tempo, que o conserto do Mundo levará mais tempo do que a vida de cada um de nós e que o primeiro passo para que, no espaço de vida que nos é dado viver, ainda lhe tomemos o gosto, é através da criação de espaços de excepção onde as pessoas possam estar fora da norma que, pelo contrário, lhes nega a individualidade, o ser, e possam relacionar-se como querem com os outros, que havemos de não deixar fugir o prazer de viver. Criando experiência e intransigência na defesa de uma liberdade que será sinónimo de felicidade em vez da posse. 

 

5.

Mas agora se percebe como a situação do teatro nesta perspectiva foi um privilégio em Portugal, graças ao que conseguimos retardar na entrada dos espectáculos no sistema de mercado. Muita coisa se consegue, de facto, por amor à camisola. Eu disse AMOR. E nem demos por isso como hoje esse espaço público acabou. Uma companhia como a Cornucópia, por pequenas razões e grandes razões, é uma aberração no sistema cultural público, pelo que conseguiu, pelo que não percebeu que já perdeu.

A função do teatro neste campo do progresso da sociedade humana é indispensável mas não é simples. Até pela sua efemeridade. Mas não confundo a minha pessoal e eventualmente ridícula arrogância quando pareço pegar na bandeira da Verdade, com a necessidade que tenho de ainda fazer notar que há mais vida para além daquela em que nos é permitido viver. E que o teatro entra nisso. Peço pelo menos aos mais novos que não se tornem em pequenos ou grandes moralistas e que não censurem uma teimosia que sai fora da medida.

 

6. Temendo ser pouco o tempo ou o espaço que nos será deixado, pondo de parte o problema da falta de dinheiro, que é assunto para todos evidente, para coisas tão aberrantes como peças de teatro antigas e que transportam em si valores de que os dias que virão talvez percam consciência, mas que para não deixar de ser quem fui, preciso de não esquecer, e simplesmente por amor aos outros, gostaria de contar, quis levar à cena dois textos do século XVII, anteriores ao tempo da Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Quis encenar (digamos melhor: passar pela experiência de pôr em cena), não um abreviado, para não perder a entrada nas Enciclopédias online, mas na versão completa, duas peças antigas que me “construíram”: o Hamlet e o Dom João de Molière. O Dom João teve ainda de ficar adiado. E o Hamlet, antes que toda a gente possa dizer que o conhece, tendo conhecido talvez só o resumo que lhe retira o que tem de interessante, queremo-lo fazer este ano em co-produção com a Companhia de Teatro de Almada. Entretanto e, na ordem de ideias que tenho vindo a contar, reconhecendo o que há de coincidência connosco na atitude de extrema humildade ou enorme arrogância, conforme o ponto de vista, do Centro de Estudos Teatrais da Faculdade de Letras de Lisboa no seu trabalho sobre o teatro passado, presente ou futuro, entendido também como espaço fora de mercado, resolvi propor que fizéssemos mais um trabalho de montagem de textos, mas portugueses, o chamado teatro pós Vicentino.

 

7.

Sabemos como a cumplicidade entre cena e público era base, quase indispensável, de representações como as que deram origem a estes textos. Essa cumplicidade existiu com certeza como relação social mais geral e perdeu-se, a não ser em algumas regras impessoais: coisas de dinheiro e necessidades básicas, iguais para toda a gente, protestos comuns contra o mau funcionamento burocrático e dos transportes e serviços de saúde. Sabemos que a sociedade hoje não reconhece como fundamental esse desejo de conhecer-se como grupo real de pessoas, e não o quer como uma coisa sua. Falo de Lisboa, pelo menos. A fama da cidade como lugar bonito, agradável e caloroso, coisa que não é mentira aliás, é tratada como imagem de marketing e está a ser refabricada. Mas porque tudo na vida se responde, quem em visitantes estrangeiros só vê dinheiro não espere grande cumplicidade da sua parte. O estrangeiro ficará defendendo o porta-moedas E o convívio puro não parece útil ao cidadão português típico. Mas já há algumas pessoas que querem, embora por certo não reconheçam e se juntem à maioria que prefere a eficácia, querem que na farmácia se gerem dois dedos de conversa, que o senhor amolador que vive ao lado, dure muitos anos, e até que o taxista vocifere com descaramento um elogio a Salazar. Já morei, há quarenta anos, na Bica, antes da “movida” à portuguesa do Bairro Alto. Era como uma aldeia, fechada em si própria, gente que tinha vindo de fora e todos da mesma região. Numa noite de temporal caiu um raio numa árvore do miradouro de Santa Catarina que partiu ao meio o meu 2 cavalos e senti a alegria dos meus vizinhos porque aquele intruso fino que era eu, tinha sido castigado por Deus pelas minhas modernices. A minha casa foi assaltada numa noite de passagem do ano e todos sabiam quem tinha sido o ladrão, menos eu. Noutro dos mais bonitos bairros lisboetas em que vivi, na Graça, mais exactamente na Costa do Castelo, o meu carro era arrombado todos os dias, e uma noite quando subi a escada, tinha uma velha bêbeda deitada no patamar do meu 4º andar sem elevador. Passei por cima do seu corpo, cheio de remorsos por dormir numa cama quando do outro lado da porta estava uma desgraçada a dormir no chão. E quando acordei o patamar tinha à porta a poça de xixi que se podia esperar. Dir-me-ão: e gostavas desses bairros? Gostava muito. Era mais perto da pele. Mas hoje como qualquer cidadão de classe média em idade de reforma, vivo na parte mais recente da cidade, com parque de estacionamento no prédio, e pouca conversa a não ser bom dia e boa tarde e ainda não se instituiu o dia do convívio do prédio na sala do condomínio, como na Suécia, para as pessoas que nem se cumprimentam no dia-a-dia, se conhecerem.

Vou de carro ao supermercado, apesar de saber que, no que resta do antigo bairro periférico, junto à minha casa, que quase dá para a auto-estrada, há lojas de abastecimento elementar, várias lojas do chinês abertas até mais tarde como os indianos de Londres, a substituir a antiga drogaria, há farmácia. E há meia dúzia de restaurantes a que vou raramente mas onde é óbvio que as pessoas gostam de estar, à antiga, a conhecer-se, a sentir-se grupo. E há mais gente velha que nova. Dos novos, são raros aqueles que não integraram já no pensamento a desumanização da cidade moderna. E eu próprio não gosto mas prefiro viver como vivo, a viver como vivia nos velhos dias da linda vista da Graça. E de cada vez que vou a esse sítio tão Lisboeta como o Largo da Achada, na Mouraria, maldigo os degraus das escadinhas de São Cristóvão, onde filmei o Cego de A Caixa e bendigo o parque de estacionamento ao lado da sede do CDS que a Câmara tornou em nobre palácio. Somos contraditórios e sobretudo é quase impossível resistir sem ser na solidão a uma transformação do mundo que se não deseja. Mas há ilhas. E reconheçamos que é mais humano o nosso desejo dos outros que a esterilização e uniformização estereotipada dos comportamentos a que assistimos.

 

8.

Ao ler estes autos antigos não são as semelhanças de pormenor com a vida das nossas cidades de hoje, aquilo que me atrai. O que de mais interessante me aproxima deles é a revelação de textos dramáticos aparentemente banais mas que pressupõem uma cumplicidade fundamental na vida e que desapareceu da vida das cidades, e que é sintoma de uma vida em diálogo e atenção com os outros. E que permitia a existência, por exemplo do teatro de revista, sobre o qual, num primeiro número do jornal Crítica, num artigo que escrevi em 1973, ainda quase bebé, e que ficou como referência sabe-se lá porquê, eu fazia o seu elogio como manifestação de Alegria, a que nasce da cumplicidade, de viver com os outros. A cumplicidade desapareceu, foi desaparecendo, e porquê? Porque tudo cresceu desmesuradamente, tudo se torna previsível e já nada dá o prazer da descoberta. A cumplicidade transforma-se em inveja. Cada um se torna no polícia do parceiro.

 

9.

E afinal o que se passa nas cidades passa-se a todos os níveis da vida social. E no teatro também.

Felizmente e como sempre, nem tudo é assim e de uma coisa, graças à força das notas dissidentes, nasce o seu oposto. O meu prazer de levar à cena este teatro é gosto de pôr em causa o lugar do teatro na situação de produto cultural do mercado da Cultura e é juntar-me aos já muitos núcleos de pessoas que com a sua prática de uma actividade cultural própria e sem ser apoiada pelo Estado, quase em oposição ou em oposição mesmo, se estão a organizar em grupos cúmplices que lhes permitem momentos de vida contra a massificação, que reconhecem como uma nova força repressiva ou pelo menos opressiva. Que nos mata como cidadãos para passarmos a ser todos simbólicos pick pockets dos estrangeiros, os senhores turistas que temos de explorar, ou de roubar em vez de os tratar como irmãos votantes no que deveria ser o nosso comum sistema Democrático da União Europeia. Ou não é assim?

E a Cornucópia, companhia velha, está para a vida cultural como um antigo bairro onde há quem procure uma maneira de viver que não é dominada pelos preços das casas entendidas como T1,T2,T3, Caixotes standard. A Cornucópia passou a ser um pequeno comércio, uma pequena empresa, uma loja de Bairro. Mas como queixar-me, se as livrarias acabaram? Pior, as que subsistiram continuam a ser livraria mas com uma massa enorme de lixo editorial, que é com certeza o que se vende e de vez em quando um livro a valer? Mais grave é que as pessoas vão habituar-se a que aquilo é uma livraria.

Para mim a gravidade da situação é perceber quanto desta nova repressão já foi assimilada como necessária, possível, europeia. Foi num instante que, no teatro entrou a televisão e a verdade é que no fundo a competição é querida pela própria profissão e actores-táxi é que tem de ser, porque ganhamos mal, e regras de produção mais selvagens, permitem as influências, os lobbies, as “amizades” de que os portugueses se julgam tão capazes, e já passou a existir uma actividade teatral com coisas interessantes aqui e além mas tudo, ou quase tudo ao sabor do mercado, que não sei se existe mas tem valores que passaram a ser regra, e que tal como o que eu dizia dos livros, vai transformar o gosto, as estéticas como se costuma dizer.

É exactamente nisto que mais razões encontrei para colar cenas destes autos e me divertir com os actores a fazê-las. Perceber como estão escritas, falar em verso antigo, quase cada cena com seu estilo próprio de escrita, personagens de muitas naturezas, cumplicidades a muitos níveis dos actores entre si e com o público. E pedir-lhes confiança numa escrita minha de colagem completamente desconhecida e inusual. É um exercício estilístico? É. Uma ginástica permanente no recurso a todo o tipo de códigos de leitura para a representação e para o texto. Um treino do pensamento contra a estupidificação do cérebro por falta de alimento. Brincadeira à parte, é mesmo a nossa maneira de pensar, os nossos hábitos linguísticos, tudo o que na vida recebemos sem criar, que constantemente temos de pôr em causa.

 

10.

E esta questão do diálogo entre o que herdámos e o que descobrimos ou inventamos é assunto de muitas épocas mas, no caso do teatro desta época, desde pelo menos que António José Saraiva publicou a sua tese: Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval, há meio-século, ninguém passa por Vicente sem que nele lhe aponte o que nele resta do primitivo Teatro Medieval, e lá vem o Diabo e o Anjo tradicionais, a teologia e a tradição popular, a influência espanhola, a italiana, tanta mistura. Outra especialista do teatro português, autora de uma das poucas histórias do teatro português, a italiana Stegagno Picchio diz, e deve ter razão, que Gil Vicente como a arte portuguesa em geral, o seu génio é a arte de tão habilmente misturar os condimentos. Basta olhar para como são meigas e bonitas as mulheres de Cabo-Verde para termos de concordar. No nosso espectáculo há a mistura das mais diversas coisas e uma das dificuldades é que se chega a mudar de registo no interior de uma frase. Mas não pode haver escrita mais moderna. É o actor quem tem de ser portador de ainda mais uma linguagem, a do seu tempo, a do seu pensamento e também o dos espectadores na plateia. A colocação em “U” das bancadas mais o centra nesse jogo. Um espectáculo como este de assuntos mil, e que põe lado a lado assuntos mais banais e outros mais profundos, sem uma estrutura fechada, (ainda hoje, depois de tanto ensaio tenho dificuldade em saber que cena vem a seguir…) não hierarquiza nada, exige-nos uma atenção que se constrói a cada momento e não é organizada como uma intriga tantas vezes o faz. Mas são personagens vivas. A propósito…quando há uns dias fiz em São Carlos, sob a direcção do João Paulo, não, não, eu não disse São Paulo…a locução ao vivo do Filme do Resnais “Nuit et brouillard” sobre os campos de concentração nazis, com documentos de arquivo, impressionou-me muito perceber que, porque estavam sentados nas cadeiras daquele teatro onde, como teatro de ópera, a habitual programação é por natureza elaboradíssima na representação da vida, muitos espectadores viam aquelas imagens de horror como se fossem fabricadas. Mas na película estavam seres verdadeiros de carne e osso.

Mas voltando ao século XVI, como estruturar o espectáculo? Como se estrutura o pensamento? E terá de ser estruturado? Parecendo que não, uma coisa como a organização do nosso computador o nosso p(ersonal) c(omputer) é uma questão vital. Mas cada vez é mais mentira que ela seja pessoal. A nossa cabeça habitua-se, também tem vícios, uma grande preguiça quase sempre, e a informática convenceu o cidadão normal de que o computador faz tudo. Faz sobretudo uma coisa, esquematiza. Preto ou branco. E o cinzento? E no entanto, eu demoro o dobro do tempo que o computador, porque não quero perder tempo a arrumar o computador, e, perdoem-me a arrogância, quero ter um pensamento que misture tudo, detesto gavetas. A educação, o ensino, como eu o entendo, mais do que transmitir conhecimentos, devia formar, destruir o que já é tão abstracto, esquemático, no funcionamento de uma máquina que manda em cada sector da nossa vida. Tudo me põe nas mãos máquinas fotográficas com fotografias que já não passam pelo papel, eu antes de ir conhecer o sítio já tenho no écran fotografias desse sítio (vou lá fazer o quê? Comer a uma manjedoura diferente? Comer felizmente, não pode ser virtual.) Já não vale a pena mostrar as fotos aos amigos. Eles podem ver no seu telefone a fotografia da paisagem que eu estou a ver na China. Etc, etc. O terreno que me é deixado livre, acaba por reduzir-se a escolhermos se organizamos as fotos por data ou por local. Ou o próprio sistema de descontos dos agentes de venda de bilhetes: o pack, os saldos de bilhetes, as promoções, etc. Fui ao Canadá porque estava em promoção…(?????!!!!!) E posso também não escolher. O programa pode permitir-me ver de uma maneira ou outra. Mas olhar para o que fotografei, já não me preocupa. E sem dares por isso o teu cérebro só desenvolve as funções que querem que tu tenhas. Provavelmente dirás, orgulhoso de ti mesmo: Tenho um arquivo de 10.000 fotografias!

Já repararam que não há assunto que não seja dominado pela competição? O melhor preço, a melhor solução, a vida mais saudável, a cor mais duradoira. O mais, o menos, mas o quê? Isto é que para mim é grave, quando começa a formatar, como agora está a acontecer, a própria maneira de se ser artista. Há mil opções, mas é quase impossível não optar. Senão o computador não guarda. Pois olhem, aqui, neste espectáculo, na nossa LISBOA FAMOSA, foi tudo feito à toa… Tem de a atenção de cada um se deixar levar. Por quê? Pelo desejo, pelo prazer, de se deixar levar por isto ou aquilo, aquele ou aquela.

Bastou haver num desses autos, o Auto anónimo das Padeiras, uma personagem alegórica que o teatro de revista depois continuou a explorar, a cidade de Lisboa, para que lá coubesse tudo. Ainda por cima, num belo filme (inclassificável….doc? ficção?) do José Álvaro de Morais, o Zéfiro, já a Paula Guedes me aparecia e ao Fernando Heitor, em frente de São Vicente de Fora, vestida assim de Lisboa. Agarrei-me logo a essa figura, logo lhe sobrepus a figura e a voz da Sofia, comecei a fazer o tal palimpsesto que meti depois no diálogo e percebi que era assim solto que tudo devia ser. A existência de outra alegoria, a da Verdade, num dos melhores textos de Gil Vicente, não integrado na Compilação, o Auto da Festa, veio a calhar que nem ginjas porque a sua simples presença em cena e podendo estar presentes em qualquer episódio, abre as portas a todos os conflitos e todas as figuras.

Foi afinal no Auto da Festa, com que encontrei o ponto de partida não só para coser estas cenas que descrevem comportamentos que ainda (por quanto tempo?) reconhecemos. A existência dessas alegorias, como a da Ventura, e as velhas personagens do teatro medieval, o Anjo e o Diabo, são ainda personagens que criam pela sua natureza simbólica uma cumplicidade cultural para os mais velhos. São valores tornados personagens, são personificações de ideias (a Fome, é outra que tal, que dialoga com personagens mais perto da vida. Quando fizemos A Cidade, textos de Aristófanes, um espectáculo do mesmo tipo, não foi isso que encontrámos. Foram caricaturas de pessoas e a caricatura do sistema, as personagens da vida e uma ideia que não era personificada e unia os textos todos, o desconcerto sim, porque a vida Democrática, sem discussão, começava já a ter defeito.

 

11.

Este espectáculo não posso dizer que seja o que é possível fazer nas actuais circunstâncias. É sempre possível fazer outra coisa. Mas posso dizer que foi feito para as actuais circunstâncias. Neste momento o que de mais importante podemos fazer, é mostrarmos as linhas com que nos cosemos, para que não nos entreguemos à fatalidade de nos tornarmos numa fábrica. Para ajudar os outros a sobreviver também como artistas. Falamos de Portugal, falamos de nós, expomos um trabalho que nos exercita a inteligência e não escondemos um grande apego à nossa vida à antiga. Somos minoria, somos desprezados? O interessante de tão arrepiante, é que só somos minoria porque os que nos desprezam são os que movem a mesa. Mas a mim compensa-me quem tenho conhecido até à despedida. E gosto de trabalhar. Neste espectáculo está muito trabalho. E teve outra versão (Santos da casa) abandonada porque nem toda a gente tem tanta fé como eu naqueles manipanços: porque há os milagres dos santos, as festas, as romarias, as marchas, e Lisboa está cheia deles. Não sei se existiram ou não. Mas não fosse o milagre de Santo António quando ressuscitou o menino, e não podíamos conhecer este fim, o menino que depois de ter morrido fica tão triste por voltar à Terra e ter de viver tão aquém do que viu depois da morte: o paraíso, a morada de Deus. É quase só por isso que fazemos a segunda parte, mais áspera. Os santos mentem nos milagres. É esse o seu encanto. Ou são os poetas? A vida enche-se do que a gente souber viver. E ao contrário do que o santo disse aos peixes, depois do dilúvio, viveram os tubarões, mas Deus ainda deixou ao homem muito para viver. Nós estamos safos, temos mar, o mar imenso, que é como o amor. E nas festas de Lisboa é que há sardinha boa. Estava a assar sardinhas, diz a canção. “Era depois da morte ou era antes da morte? Mas haveria morte verdadeiramente.?” Sei lá. Veio a Saudade. Aqui fica. Aqui jaz.

 

Luis Miguel Cintra

 

P.S.

Por favor pensem nisto: um rebanho de patas e pelo menos um ganso, custa a ter num palco, é uma complicação, porcaria, gente a protestar, fogem, voam. Como se fez da primeira vez para a rainha na igreja de Santos? Não sei mas imagino que foi assim. Mas elas podiam responder, contracenar. Muito imponderável, muito imprevisto. 2 patos telecomandados só respondem se alguém os telecomanda. Isto transforma tudo. O jogo passa a ser feito na cabeça do actor e do espectador. É isto a dramaturgia. Mas não é isto a mentira.

Imagens

fotografias de Luís Santos ©





Política de privacidade