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Historial

92 - Sangue no Pescoço do Gato

Ficha Técnica

 

Sangue no Pescoço do Gato
de Rainer Werner Fassbinder

 

Tradução José Maria Vieira Mendes

Encenação Luis Miguel Cintra

Assistente de encenação Manuel Romano

Cenário e figurinos Cristina Reis

Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos

Desenho de luz Daniel Worm d’Assumpção

Som Vasco Pimentel

Director técnico Jorge Esteves

Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo e Abel Fernando

Montagem e Operação de luz e som Rui Seabra

Guarda-roupa Emília Lima

Costureira Maria do Sameiro Vilela

Contra-regra Manuel Romano

Cartaz Cristina Reis

Secretária da Companhia Amália Barriga

Interpretação

Phoebe Zeitgeist Rita Durão

O Polícia Paulo Moura Lopes

O Talhante António Fonseca

O Galã Ricardo Aibéo

O Soldado Duarte Guimarães

O Professor Luís Lima Barreto

A Mulher do Soldado Morto Luísa Cruz

A Rapariga Sofia Marques

O Modelo Rita Loureiro

A Amante Rita Blanco

 

«Cena: Boulevard. Phoebe Zeitgeist está sentada, imóvel, numa poltrona, etc. Do altifalante ouve-se uma voz masculina: Phoebe Zeitgeist foi enviada à terra por uma estrela distante para fazer uma reportagem sobre a democracia dos homens. Phoebe Zeitgeist tem porém algumas dificuldades: apesar de ter aprendido as palavras ela não percebe a linguagem dos homens.»

 

NOTA Phoebe Zeitgeist é a personagem de uma banda desenhada de Michael O’Donoghue e Frank Springer; as últimas palavras da peça são uma citação da obra de Hegel “Wissenschaft der Logik”, Segunda parte: “Die subjektive Logik”, 1º Capítulo.

 

Colaboração de Fátima Ferreira e Fundação Rainer Werner Fassbinder

 

Lisboa, Teatro do Bairro Alto15/09 a 30 /10/2005

40 representações

 

Porto, Teatro Carlos Alberto4 a 8 /01/2006

5 representações

 

São Miguel, Teatro Micaelense. 30/11 a 1 /12/2007

2 representações

Estrutura subsidiada pelo Ministério da Cultura/IPAE, Instituto Português das Artes do Espectáculo

Apoio Moviflor

Este Espectáculo

Sangue no Pescoço do Gato é uma peça de teatro que, segundo o autor, não é uma peça de teatro, seria talvez um guião de espectáculo. Uma primeira e enigmática indicação diz: “Cena: Boulevard.” Cena de rua? Teatro de “boulevard”? Não é uma história. Não tem intriga. Mas é um “teatro”.

Como sempre no teatro, um conjunto de actores está perante um público. Estão todos no mesmo sítio numa noite de espectáculo, público e actores. Estes actores, todos os actores, são gente como o público que tem à sua frente, falam a mesma língua, vivem na mesma cidade, vivem o mesmo tempo. Sofrem, actores e público, todos a mesma condição, vivem todos a mesma “democracia”. Devíamos dar por isso, porque isso é a primeira verdade. Reunimo-nos ali. Estamos todos num salão. No lugar instalado do convívio. Depois gera-se um jogo.

A situação é de espelho, mas a acção é representar. Aqui são nove actores. Não sabemos se são um grupo. Mas estão todos num palco diante dum público. Quem são? Para aquele frente a frente, não lhes daremos nomes, mas distribuamos a cada um, um pouco à toa, um espaço social tipificado: seja um, um Polícia, outro um Talhante, outro um Galã, um Soldado, um Professor, aMulher de um Soldado Morto, uma Rapariga, um Modelo e uma Amante. Começam a surgir da nossa memória (no público e no palco é provavelmente a mesma) comportamentos, gestos atitudes, maneiras de vestir, de olhar, de estar. É o ponto de partida. Surge a primeira imagem de grupo reflectida. (Falsa ou verdadeira pouco importa, tão verdadeira como as nossas cabeças). Juntamos depois um décimo elemento. Imaginemos uma estrangeira, alguém que vinha do exterior, doutro planeta.(A brincar, claro. Como é que pode ser de outro planeta uma actriz com tanta carne e osso como nós? Adiante, é um jogo.) A estrangeira chega, entra naquele espaço da mentira habitual. O jogo começa e o público passa a observador. Perante o terceiro olhar, o da estrangeira, o grupo sente-se observado e ameaçado e entra num processo de afirmação. Ataca. Mas fragiliza-se. O ataque é divertido. Cada um quer ser mais gente do que é. Querendo convencer-se de que é forte, o grupo começa a dividir-se em afirmações individuais: cada um dá à estrangeira a sua lição de bem viver em sociedade e cada um confessa ao público uma sua história pessoal que, aos seus olhos, o faz existir. (Histórias precárias... quem pode ter nas nossas sociedades uma vida só sua, diferente?). E o espelho começa a partir-se para reflectir mais, começa a revelar contradições, mal-estar, muita mentira e sofrimento.

Das ocultas pressões e tensões salta então, felizmente, uma faísca, a primeira frase que um deles diz a outro à nossa frente, e já esquecido da estrangeira: A TUA MÃE É UMA CABRA. E o jogo muda de feitio. Nova regra. O grupo continua na sala com a estrangeira mas a mentira explodiu, o espelho fez-se em estilhaços. A máscara caiu. No desencanto, representem-se os fragmentos, a memória do viver comum, em todas as combinatórias possíveis das figuras em cena. A super-estrutura. São diálogos que conhecemos, pedaços de vida tipificada, comportamentos habituais, relações violentas que a linguagem petrificou ou que ficaram para sempre na pedra nas palavras.

A estrangeira não entende esta guerra que está dentro dos corpos, escondida por trás das palavras. Ela repete frases escolhidas sem critério, tenta fixá-las.Em vão. Está de fora. Os diálogos que ouve não são a vida que lhes dá voz. Percebe as palavras, não entende a linguagem. Mas o espelho lá está perante o público que, esse sim, reconhecerá todos aqueles padrões de comportamentos e relações e sentirá no seu corpo o reflexo, a imagem partida que o espelho lhe devolve. Talvez surja do grupo a loucura, o desespero. Que a estrangeira não verá porque são coisas humanas.

Novo salto: a estrangeira também quer entrar no grupo. Julga que aprendeu a conviver: tenta comunicar, diz à toa frases que lhes ouviu, sem ter entendido o contexto. O grupo, em pânico, volta a defender-se, foge de si próprio para a mentira: situação de festa, superfície, tédio, rejeição da estrangeira. Resultado: a estrangeira, que não desiste de compreender, torna-se vampiro, tenta, um a um, sugar-lhes o sangue. Mas sem sangue não há vida, caem os corpos e a linguagem desfaz-se, fragmenta-se. E a estrangeira, com o sangue dos outros mas sem a sua vida, fica estrangeira outra vez, reorganiza-se num discurso teórico de total abstracção sobre o próprio entendimento, que se não deu. Cita-nos a nossa memória cultural, um pedaço de Hegel, tão longe da vida como as palavras em que se formula. Tão incompreensível para nós, observadores do jogo e cúmplices dos jogadores, como para a estrangeira o que os jogadores disseram. E vai-se embora, tão ignorante como tinha chegado. Deixa-nos no nosso planeta, palco e plateia, entregues à nossa melancolia. Ou ao desespero ou à raiva, que talvez ainda haja diferenças no que cada um sentir.

Que aconteceu? Fizémos um jogo, uma amarga brincadeira. Um complexo jogo de sociedade para nos vermos ao espelho. Pressupõe-se cumplicidade, claro, e sentido de humor. Como no “boulevard”. Mas ao contrário do “boulevard”, menos para rir que para chorar. Ao contrário da estrangeira, o público, tão de carne e osso como os actores no palco e as personagens tipificadas que o jogo lhes inventou, poderá entender que a realidade é mesmo assim, que a sociedade em que vivemos, a chamada democracia, está mal, que isto não é viver, e que a doença é grave, que a vida não é livre nem de cada um, que está toda ao contrário, que ninguém se consegue inventar, que a opressão já vem de dentro e que a própria linguagem está contaminada, porque oprime e torna em regra o nosso viver, o tipifica em esquemas de opressão e repressão, e porque o nosso viver, em vez de a inventar, a torna regra, que a linguagem é a nossa maneira de pensar, e o nosso pensar está dominado e já não sabemos amar.

O que está em causa em cena é o nosso viver. É a nossa sociedade. O nosso viver em grupo em cenas dois a dois. As relações humanas. A sociedade e aquilo que a estrutura, a linguagem afinal. A sua relação com o corpo, os pensamentos, a memória, os sentimentos, os desejos, o movimento, a identidade. Uma sociedade, um grupo, maior ou menor, o que é? Muitos cada um ou todos? Massa imóvel ou transformação? Que palavras invento para estar contigo? Que gesto, que bofetada, que beijo? Quem sou? O meu nome o que é? Franz, Renate, Karl, Maria, Madalena, Marion, Marina, Magda Schneider? Quantos há? Eu sou o meu B.I.? Trabalho para quê? Para quem? O que é agora um ser humano? A peça tenta, mas o nosso viver não põe perguntas. Estagnou na sua  violência. E dela se alimenta para crescer.

A não ser talvez que outra qualquer violência o faça explodir. Mas virá a morte. É verdade que o terrorismo de Phoebe, a estrangeira, quando os mordeu e lhes chupou o sangue, destruiu mas criou entretanto alguma lucidez. São perguntas e palavras chave, ou finalmente fragmentos de pensamento, o que os jogadores tentam dizer com a morte pela frente, no momento de cair. Ouvimos: “tempo”, “desespero”, “nome”, “movimento”, “as palavras”, “esquecer”. Mas é tarde. A vida então passou.

Alguma coisa de comum há nos três textos que este ano trabalhámos, alguma coisa passa do Brecht de Um Homem é um Homem para aqui e para um texto como A Cadeira de Bond: é o mesmo teatro político, é a mesma ideia de teatro como uma permanente tentativa para entender e abrir o espaço do Homem na sociedade assassina que ele próprio inventou. Nos dias que vivemos sentimos necessidade deste teatro. Queremos entender. Fassbinder entendeu por dentro, longe do olhar de Deus, do lugar de onde se sofre mais, com a sua curta, intensa e violenta biografia. Cada filme, cada peça, sabe a sangue, o sangue do trabalho, dos amores, das zangas, do álcool, do sexo, da droga. A arte a confundir-se com a vida como ela é, com muita morte e sangue no pescoço do gato. Muita coragem, nenhum medo, nenhuma mentira. (Ele não votava.) Tinha uma imensa ternura. As suas obras não são manifestos, são testemunhos. Outro santo, como Pasolini. Muito poucos conseguem ser assim. E morrem cedo. Tão solitários no coração da vida. Mas há “vidas exemplares”.

Toca fundo este texto. E deixa espaço livre. O texto escrito deixa um espectáculo por fazer. Descobrimos um jogo, um espaço para a feia ambiguidade que os sonhos constróem com a memória, um guarda-roupa possível para a caracterização da máscara que cada um vestiu, um disfarce para a Phoebe, luzes que mais do que bonitas, reflectissem as regras decididas para a função, um conhecido “pot-pourri” de sons ambiente, mas sobretudo trabalharam os actores. Sem alardes e em grupo. Da sua invenção nasceu este espectáculo, naturalmente, ao sabor dos ensaios e de uma dinâmica interna feita de dez pessoas, no espaço de liberdade que nos resta. No teatro acho que ainda é possível tentar viver doutra maneira.

 

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de Luís Santos ©





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