Afabulação
de Pier Paolo Pasolini
Tradução Maria Jorge Figueiredo
Encenação Luis Miguel Cintra
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos
Director de montagem Jorge Esteves
Desenho de luzes Daniel Worm d' Assumpção
Montagem eléctrica Pedro Marques
Operação de luz Pedro Marques
Montagem João Paulo Araújo e Abel Fernandes
Contra-regra Rui Pragana
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Julieta Carvalho, Maria Barradas, Piedade Duarte e Teresa Cavaca
Conservação do Guarda-Roupa Alice Madeira
Colaboração Pedro Gardete e Luis Lopes
Cartaz Cristina Reis
Secretária da Companhia Amália Barriga
Interpretação
Sombra de Sófocles José Manuel Mendes
Pai Luis Miguel Cintra
Mãe Rita Loureiro
Filho António Pedro Cerdeira
Rapariga Rita Durão
Nigromante Glicínia Quartin
Padre, Comissário, Médico, Ferroviário Luis Lucas
Mendigo e Espírito do Filho no Epilogo António Pedro Cerdeira
Música no fim do espectáculo ouve-se um recitativo da Penélope do Il Ritorno d'Ulisse in Patria de Claudio Monteverdi, interpretado por Norma Lerer na gravação dirigida por Nikolaus Harnoncourt com o Concentus Musicus Wien para a Teldec (Das Alte Werk).
Colaboração de Doutor Emílio Salgueiro, Sérgio Niza, Jean-Claude Biette, Professor Kanna, Paulo Cardoso, Ricardo Aibéo, Jorge Lima Barreto, Pablo Llorca, Maria do Carmo Vasconcelos, Carmen Santos e Jorge Sequem, Ana Costa Almeida, Área Museológica da CP, Fundação Caloute Gulbenkian - Serviço ACARTE.
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 04/11/1999
34 representações
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
Apoio de RDP, Antena 1
Vidas ejemplares. Era uma colecção de livrinhos que o meu pai me ia regularmente oferecendo. Trazia de Espanha, das suas viagens, e eu era um menino, talvez ainda agarrado aos seus joelhos. Muitos santos. Gente rara. O melhor era São Francisco, o mesmo de Rossellini, o mesmo de Ucellacci e uccellini. E os mártires todos, com sangue a escorrer. Desde então precisei sempre de exemplos. De santos. Do exemplo de vidas políticas. Voltadas para os outros e voltadas para Deus. A nós, menos grandes, e sobretudo já passada a idade de crescer, são quem nos defende do Mal, do cinismo. E nos deixam o desejo. Ainda vontade de conhecer. São Pier Paolo faz agora parte da minha colecção.
AFABULAÇÃO fala sobretudo de conhecer, ou seja, tocar, ver e sentir sem dominar. Cria horror ao poder. Pensa com leis poéticas, felizmente inúteis. Põe outra vez em cena o Édipo antigo mas no lugar da Esfinge põe diante dele a própria vida, em vez de um enigma um mistério. O próprio futuro. Foi para falarmos desta generosidade fundamental ou desta humildade (ser pequeno diante do Homem, filho de Deus) que quis pôr em cena este texto. Porque é difícil para "uma sociedade num péssimo momento da sua história". E porque quero também perguntar: que faremos perante um filho "anacronicamente inocente" que não nos quer matar? Perante o seu corpo?
Na passagem das gerações, falemos sobre pais e filhos. Falemos como se fala no teatro, com o corpo, como na vida. Falemos.
Este é um teatro que se quis escandalosamente da palavra. Austero. E palavroso. Sem medida. Um pequeno teatro enorme. Público, político, como o corpo terá de ser. O teatro dá-nos na cidade ainda esse espaço. Só que o espaço do teatro na cidade não é o espaço da cidade. Existe cidade? Nas nossas democracias o escândalo é difícil. Quem toca quem? Todos livres de não ser tocados. Tu pensas o que pensas que queres, eu penso o que penso que quero. A cidade funciona sem pensar. E cada vez menos pensamos o que queremos. E cada vez mais pensamos o mesmo. E não queremos. Como se usufrui da liberdade dos outros? Como reconheceremos o corpo de cada um? Este teatro, nenhum teatro, será já escandaloso. Este espectáculo terá por isso de ser infecundo, humilde, é talvez um "oásis de esquecida dor". É feito por amor aos novos a quem talvez possa ou talvez não possa interessar. Não sei.
Diz-se para aí obscenamente que esta é a época do corpo. Que corpo? Filho, deixa-me ver o teu corpo. Onde estão ainda os corpos? O corpo de cada um? Este texto fala também do corpo, mas de um corpo escandalosamente sexuado. Este espectáculo gostava de ser, como o texto, apenas isto: um discurso púdico, dolorosamente solitário, sobre o corpo, contra a grande solidão. "...perdendo o sentimento/a parte racional".
"...mas dentro n'alma o fim do pensamento
por tão sublime causa me dezia
que era razão ser a razão vencida.
Assi que, quando a via ser perdida,
a mesma perdição a restaurava;
e em mansa paz estava
cada um com seu contrário num sujeito.
Oh, grão concerto este!
Quem será que não julgue por celeste
a causa donde vem tamanho efeito,
que faz num coração
que venha o apetite a ser razão?
Aqui senti de Amor a mor fineza,
como foi ver sentir o insensível,
e o ver a mim de mim mesmo perder-me.
Enfim, senti negar-se a natureza;"
Como diz Camões numa Canção.
Luis Miguel Cintra