A Missão Recordações de uma Revolução
de Heiner Müller
A peça utiliza motivos do conto de Anna Seghers A Luz sobre a Forca
Tradução Anabela Mendes
Encenação e dramaturgia Luis Miguel Cintra e Cristina Reis
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistente de encenação Carlos Fogaça
Assistente de cenografia Linda Gomes Teixeira
Montagem Fernando Correia
Ajudante de montagem Amilcar Correia
Luzes Luis Miguel Cintra e Cristina Reis
Instalação eléctrica e operação de luzes José Eduardo Páris
Operação de som Amália Barriga
Colaboração para o guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Clotilde Dias e Conceição Quadrado
Colaboração dramatúrgica Anabela Mendes
Colaboração na preparação do espectáculo Ana Jotta
Interpretação (por ordem de entrada em cena)
Marinheiro Francisco Costa
Antoine José Manuel Mendes
Mulher Raquel Maria
Debuisson Luis Miguel Cintra
Galloudec Luís Lima Barreto
Sasportas Rogério Vieira
Primeiro Amor Márcia Breia
Pai Gilberto Gonçalves
Mãe Dalila Rocha
Voz Alda Rodrigues
O Teatro da Cornucópia agradece ao Teatro do Mundo ter abdicado de levar à cena este texto para que o Teatro da Cornucópia o pudesse fazer
Colaboração de Acácio de Almeida, Vasco Reis, Hospitais Civis de Lisboa, Augusto Barros, Maria Adélia Silva Melo, Luís F. Lindley Cintra, Paulo Cintra Gomes e I. Gama
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 14/07/1983
Apresentação em Veneza (Bienal de Veneza – secção Teatro), Cantieri Navali, Giudecca
80 representações
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
Quando fizémos o espectáculo oratória falávamos da vontade de pôr o dedo nas feridas, de as abrir, de as expor. Falávamos de um mal estar nosso que queríamos partilhar. De uma necessidade de falar do nosso tempo, do sentido da vida e da história, talvez de um mal estar contemporâneo. Fizémos um espectáculo que dizíamos ser espectáculo paragem, espectáculo reflexão.
O que vale a pena no trabalho que fazemos é a maneira como ele se nos vai metendo pelo corpo dentro, a violência com que se apropria de nós. A máscara entra pela pele, como diz o traidor Debuisson na missão. Ao fim de dez anos de encontros e desencontros com o público, o que conta é a verdade do que fazemos; começamos a perceber mesmo que o teatro é um momento privilegiado de encontros verdadeiros, um momento único de transparência, um mecanismo para a máxima lucidez possível. Torna-se-nos cada vez mais insuportável que ele se ignore a si mesmo, que viva da sua própria corrupção, que inverta os seus processos para se tornar em máquina de distâncias, que aceite o meio termo, que despreze a sua efemeridade ao ponto de a deixar tornar-se falsa. Depois de abrirmos a ferida na oratória era difícil voltar a fechá-la. E um espectáculo que pensámos que fosse uma paragem para reflexão, meteu-se pela nossa vida dentro e tornou-se talvez no ponto de partida para nova fase de trabalho. A missão nasce daí.
oratória tinha três textos clássicos para responder aos nossos silêncios, textos não encenados para dar lugar à encenação do silêncio que já os percorre, era a falta de uma quarta resposta já nossa, já nossa contemporânea. Acabava, depois de a travessia aérea do oceano de Brecht, com novo momento de interrogação, de insatisfação. De medo? (Era medo o que a personagem interpretada por Alda Rodrigues tinha quando no momento final do espectáculo corria para a frente?) Na missão de Heiner Müller fomos encontrar um texto possível para a continuação de oratória, um texto que começa onde a resposta de Brecht acaba, ou fomos, pelo menos, encontrar um texto que, se não é a quarta resposta que faltava na oratória, podia ser o texto dos fantasmas que povoam a cabeça dos personagens da oratória, um texto que torna o silêncio em voz, um texto que nos pareceu subverter a melancolia ou a auto-piedade que apesar de tudo podia nascer da oratória, um texto que podia inverter valores, que podia encarar o medo como última medida possível contra o desmoronamento.
Sentimos que oratória falava do “fundo dos factos onde nós continuamos a plantar as nossas débeis esperanças ou o próprio frio que enregela o nosso ontem e amanhã num hoje eterno” de que o traidor Debuisson fala na missão. Que A missão falava da “estrela que vem dos frios do universo, um meteoro de gelo ou de metal” que nesse mesmo fundo faz um “buraco definitivo”. Tanto o sentimos que a primeira ideia para o espectáculo foi fazê-lo no mesmo cenário da oratória, invadido por um enorme “container” industrial, côr de laranja, com certeza, porque essa é a côr que eles têm, e é a côr estranha da desmedida que invade os nossos mundos.
Foi depois necessário, importante, não dar esse salto tão depressa, povoar ainda o nosso ano de trabalho com imagens simples, quotidianas, do mal-estar contemporâneo. Desfizémos o cenário de oratória para construir mariana espera casamento e novas perspectivas. As palavras de A missão foram entretanto entrando na vida da companhia. A missão acabou por coincidir com o seu 10º aniversário. E o enorme “container” acabou por povoar não já o cenário da oratória mas todo o espaço do nosso trabalho, com restos de materiais de espectáculos antigos, restos de outros cenários e guarda-roupas, ruínas de trabalhos, fantasmas das bancadas onde connosco se sentou ou não o público, no local mesmo onde ultimamente estiveram. Porque não tínha-mos dinheiro para outra montagem mas também porque quisémos que a traição de que se fala fosse também a traição que sentimos que povoa não sabemos bem ainda nem onde nem como a vida que vivemos (“a tua, e a tua e a minha carne”), e que povoa também, pois claro, o trabalho que fazemos dentro das paredes pretas desta cave gigantesca de betão que não tem “placas que indicam os abrigos contra bombardeamentos” mas onde já há alguns anos o actual director do Museu de Teatro tinha medo de entrar. Quisémos que o espaço do espectáculo fosse o nosso espaço, sem fingimentos, que fosse uma ruína nossa, um espaço também de construção, como se também nós esperássemos “a vitória do deserto”. “Até à vitória do deserto toda a ruína é um espaço de construção contra as garras do tempo”.
Foi assim que tentámos viver este texto. Como palavras que vão passar a povoar o nosso medo. Com a certeza absoluta de que tem tudo a ver connosco. Para irmos descobrindo porquê. Para vivermos a nossa traição. Mas que traição? Saberemos do que estamos a falar? Saberemos o que é a revolução, ou o que é a morte, ou o que é uma máscara, nós actores que dela fazemos profissão? Saberemos o que é o Terceiro Mundo? O que são os outros Mundos? Saberemos sequer o que é uma missão? Gostamos deste texto porque o não entendemos. Porque o não sabemos explicar, porque a sua dramaturgia só pode ser dar-lhe um corpo. Dar-lhe o nosso corpo. Provisoriamente. Porque no momento em que o fazemos logo nos achamos provisórios, o texto continua lá para nos devorar outra vez.
A história da preparação deste espectáculo é esta descoberta da incapacidade de o encenar, a descoberta de uma frustração, de uma violência, se quiserem da total ausência de prazer. Quisémos primeiro tornar este texto sincero, trabalhámos com os actores improvisando, tentando encontros com o corpo, com a voz, sem marcação, sem implantação de cenas, tentámos o abandono possível de cada um ao texto que tínhamos já na memória, tentámos construir personagens, criámos ambientes, fizémos todas as possíveis tentativas para chegar à máxima verdade, a um possível coração das questões. Cada instante descoberto nos foi parecendo falso, ainda uma impostura. Fomos a pouco e pouco percebendo que se não pode representar mesmo um texto assim extremo. Que era necessária a morte mesmo, o coração mesmo numa morgue, os ossos de alguém desenterrados mesmo de uma campa. Debuisson, o traidor, fala com fantasmas, fala, toca, dois amigos mortos. Como é a máxima sinceridade, a máxima verdade disto? Se na oratória era possível pedir aos actores um deixar-se estar, um deixar-se expor, fomos percebendo que um trabalho destes exige um querer, requer energia, requer a criação de uma enorme mascarada, afinal o regresso à “teatralidade”, ao espaço aberto para a invenção, para a descoberta, na cabeça (nossa e dos que nos vêem) duma verdade ou de uma dúvida, ou de uma vontade de conhecer verdades que são importantes demais para que as transformemos em sinceridades caseiras. Passámos a destruir todos os ambientes, a deformar até a brutalidade, a tornar os textos em abstracção, em desenho puro. Tomámos a noção da desproporção que entre nós e as palavras do texto cada vez mais se tinha introduzido, na única estrutura de suporte. Criámos vazios, descontinuidades. Quisémos que a contradição, a oposição dos contrários, fosse a ponte para o abismo dos pensamentos. Fechámos na enorme caixa a ausência de dimensão, pintámos de palhaço o desespero de Antoine, uniformizámos os três mundos dos três revolucionários, cobrimos com uma máscara o fim do teatro da revolução branca. Deixámos branca a pele preta. Pintámos de preto falsas peles brancas, carcaças, moldadas em nós para a falsidade ser total. Afastámos a música que é ponte para a imaginação. Se na oratória queríamos em cena a presença da vida, o peso do ar, a pele dos actores, o que aqui era importante conseguir era a presença da morte, uma máscara mortuária. Quisémos um espectáculo cru, onde nada estivesse “em vez de outra coisa”, tudo fosse obviamente postiço. Encontrámos o tom que nos pareceu certo para este texto não em nenhuma imagem de vazio mas na criação de imagens fortes, cheias, provocatórias, separadas por vazios.
Reencontrámos Brecht? Da aspereza, da impotência em concretizar o texto saltámos para uma espécie de fé, a de que as imagens que construímos para suporte deste texto sejam falsas mas criem verdade, aposta em que os imaginários não são tão diferentes uns dos outros como isso, em que as imagens que surgiram de um encontro verdadeiro nosso com as palavras deste texto criem questões verdadeiras também nas cabeças dos outros, criem uma qualquer clivagem na superfície do nosso viver.
É um espectáculo sobre o nosso tempo? Como quisémos que fosse oratória? É com certeza um espectáculo do nosso tempo. As vozes dos personagens da Revolução Francesa dizem as nossas consciências. Os destroços possíveis de narração que encerrámos na boca cega de uma espécie de esfinge são textos de hoje a partir de uma história antiga, não sabemos já em que século vivem Antoine e a mulher, sequer se vivem ainda, o marinheiro é o mensageiro da História com letra grande, a carta de Galloudec a Antoine é uma ficção contemporânea, um fantasma também português. Partimos do princípio que Debuisson, médico revolucionário na Jamaica é o homem do monólogo do elevador, ou que, se não é, nos digam porquê. Foi no lugar do monólogo do elevador, dessa vertigem moderna, que nos colocámos. Tentando que a História passe a fazer parte de nós. Quisémos um espectáculo em que o “descontrole no tempo” de que o homem do elevador fala se sentisse. Gostávamos de ter feito um espectáculo para o nosso tempo, para essas construções de futuro que as nossas contradições têm de continuar a fabricar.
Quisémos criar necessidades. Aí seremos talvez ainda didácticos. Este texto obriga-nos, no entanto, a não organizar as coisas, proibe-nos a teimosia em organizar o mundo de que falávamos a propósito de oratória. À narração substitui-se a sobreposição, a sobreimpressão. Não é por acaso que acabámos por sobrepor todas as cenas do espectáculo no pequeno espaço-écran da caixa. Não é por acaso que sobrepusémos à forma de um “container” a esquadria em que os pintores teóricos do século XV inscreviam as suas imagens cristãs. Ou que aos monumentos funerários do Egipto sobrepusémos uma imagem dos três personagens na Jamaica, ou que à sobreposição de Danton e Robespierre a Galloudece Sasportasacrescentámos nova sobreposição, a dos jogadores de futebol americano. A ideia de peles sucessivas, como as da cebola, como as da serpente - imagem da traição, encontrámo-la nós nesse jogo de correspondências ou de dissonâncias sobrepostas, com que pensamos que afinal este texto se constrói.
Foi difícil encontrar bases de trabalho para um trabalho assim desconexo, descontínuo, ainda para mais construído a partir de certa altura dentro desse mecanismo infernal, dessa lupa, dessa radioscopia que a nossa caixa laranja se revelou ser. Muitas vezes nos sentimos actores perdidos desorientados, incapazes. Tentámos muitas, muitas versões de cada coisa. Perdemo-nos outra vez ao tentar jogar umas cenas com as outras. Apesar das interrupções e das gigantescas dificuldades de produção em que o espectáculo foi ensaiado, ensaiámos muito. Chegou a haver acidentes: um de nós partiu o cotovelo em pleno ensaio. O que acabou por ficar é, apesar de tudo, simples, pobre. Provisório. Contraditoriamente trabalhado contra o provisório. Como se fosse a última vez que trabalhamos. Não sabemos fazer de outra maneira. Porque as imagens ficaram a base do nosso trabalho, o cenário assina também a encenação.
Luis Miguel Cintra