O Treino do Campeão Antes da Corrida
de Michel Deutsch
Tradução Helena Domingos
Encenação J. A. Osório Mateus
Assistência de encenação Maria Emília Correia e Jorge Nascimento
Cenário e figurinos João de Azevedo
Assistência técnica Paulo Cintra Gomes e Cristina Reis
Montagem Fernando Correia
Colaboração de montagem Manuel Barata e Januário Barata
Execução de guarda-roupa Emília Lima
Som Paola Porru
Fotografias Cristina Reis e Paulo Cintra Gomes
Interpretação
Liliane Maria Emília Correia
Jeanine Raquel Maria
Maurice Luis Miguel Cintra
Lisboa, Teatro do Bairro Alto. Estreia: 06/01/77
28 representações
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
Apoio da Fundação Calouste Gulbenkian
“Como é evidente, trata-se de um drama”
à Liliane do escrito, apesar de tudo.
Portanto, O TREINO DO CAMPEÃO ANTES DE CORRIDA. Mas se de treino se trata é nos bastidores que pode ter tido lugar porque em cena, quando as luzes abrem, sobre um lar conjugal e um talho adúltero: lugares interiores para um campeão de França em aventuras triangulares que comportam o crescendo, mas nada que com treino ou desporto se pareça. A não ser que seja outro o treino, e a corrida também — e corrida que o ciclista Maurice já não corra.
“Trata-se de um drama”, é evidente: assim reza a primeira rubrica da peça. Mas a dimensão do drama não comportava tais modos da acção nem tais estatutos das personagens. E o drama assim alarga-se e fractura-se: nas ruínas da linha contínua corrói-se-lhe o perfil. Ou estado regressado de um drama que fosse ensaiar escalas até à farsa enorme (o registo de Maurice é transportado de outros teatros para um drama que o não previa nem sabia), até às extravagâncias trágicas do apaziguamento final ou das várias mortes: a faca, o filtro envenenado. Drama duplo, também: embora em movimento e construção sobre repetições e diferenças, drama-em-prosa (o do ciclista); e, como de um Claudel transtornado, drama-em-verso por vezes (o das mulheres, fora da lei do Pai). Drama ainda (ou primeiro) de um insólito instalado no quotidiano, de um quotidiano analisado (e a viver) como insólito. Um modo de acreditar no teatro. Teatro de personagens que não sabem e se solidificam até ao rigor da morte. Em cena, com aparência de carne e osso, três figuras apanhadas por graus diferentes de cegueira e surdez: e o confronto e espectáculo dessa diversidade. E uma quarta personagem que a todos sabe e compreende: a ideologia. Em estado puro e opaco nas várias linguagens “naturais” do ciclista; “même jeu” para as relações sombrias de pavorosa opressão nas catorze cenas exemplificadas. E se estas personagens morrem ou apenas tenuemente sobrevivem, sabem a História e o Teatro que a outros mais anos foram dadas.
Acção em 1910. Uma distância em que pelas artes nos reconhecemos. Morte ou delírio da forma histórica do realismo que o naturalismo foi - o realismo burguês: projecto histórico de classe a manipular a formação social em jeito de investigação fisiológica, como se de um organismo se tratara. Mas Zola acusara já o Criador e Goncourt era nome de prémio; Antoine deixara há muito o “Teatro Livre” e viera espernear em digressão no repertório de sangue do “Grand Guignol”. E, como no “Grand Guignol”, O TREINO é também drama do “fait-divers” sanguinolento e terrível, analisado com o ar sisudo e o escalpelo que ficaram do projecto experimental. Transposição para uma “cena outra” da cena naturalista e análise dos seus ingredientes e movimentos. Teatro anatómico (dialéctico) de um projecto (positivista) de anatomia. O salto da morte.
Em 1910: ao mesmo tempo que uma guerra capital se prepara e se prevê. Exacerba-se o capitalismo inter nacional que ensaia a corrida de fuga às suas próprias crises. Os potentados sensibilizam pela intoxicação e o treino companhias inteiras de ciclistas e Marrocos faz-se teatro de ensaios e manobras. O imperialismo - “estádio supremo do capitalismo” - exercita companhias de campeões para corridas de palco nas trincheiras. Há uma guerra no ar que se respira e no enorme talho a carne é para canhão.
O TREINO DO CAMPEÃO antes da corrida: o real mas não todo o real: o exemplo. E o verdadeiro do falso. A cena naturalista e as margens de que não podia ter consciência. O lugar da fala e o indeterminado. No teatro, lugar onde a fala determina.
E um projecto de espectáculo: “modesto mas sincero preito à questão do realismo”. Para o segundo balcão.
J. A. Osório Mateus