Não Se Paga! Não Se Paga!
Farsa de Dario Fo
Tradução Rui Ruivo Mouzinho adaptada pelo Teatro da Cornucópia
Encenação Luis Miguel Cintra
Cenografia e figurinos Cristina Reis
Assistência de encenação Alda Rodrigues
Assistência de cenografia Linda Gomes Teixeira e José Pedro Gomes
Montagem Fernando Correia
Luzes César Silva e Luis Miguel Cintra
Montagem sonora Hermenegildo Gomes
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Clotilde Ezequiel, Maria da Conceição Quadrado e Clotilde Dias
Interpretação
Antónia Raquel Maria
Margarida Márcia Breia
João Luis Miguel Cintra
Luís Francisco Costa
Chefe da Polícia, Sargento dos Carabineiros, Cangalheiro, Velho Gilberto Gonçalves
Primeiro Carabineiro, Operário e Polícia Luís Lima Barreto ou Rogério Vieira
Segundo Carabineiro, Operário e Voz na rua José Pedro Gomes
Colaboração de Beatriz Nolasco, José Magno, Cecília Paula (Ar Líquido) e Maria Adélia Silva Melo.
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia 09/01/81
Digressão: Porto, Vila Meã, Amarante, Seixal, Tomar e Setúbal
214 representações
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
Apoio da Fundação Calouste Gulbenkian
Diz-se no programa de NÃO SE PAGA! NÃO SE PAGA! no Berliner Ensemble que Dario Fo se tornou “para muita gente de teatro de esquerda na figura simbólica do seu sonho não realizado: a ligação do teatro de massas e de qualidade, de agitação e divertimento, o teatro como forum da luta política”. Não sei se o nosso sonho terá sido ainda exactamente esse. Mas o que é certo é que, de facto, é exactamente nessa zona que desde sempre andaram as nossas dúvidas e as nossas tentativas, como aliás se passou com todos os “filhos” de Brecht. E é nos caminhos desse “sonho” que toda a carreira de Dario Fo se desenrola. É, de facto, com emoção que descobrimos na carreira paradigmática de Fo, autor, actor, encenador, director de companhia, quase todos os passos, quase todas as ilusões, das diferentes tentativas que na nossa terra e nas outras se têm vindo a fazer para “acertar” num teatro de esquerda, militante, revolucionário, que acima de tudo combata a cultura da burguesia que tanta e tanta coisa tem vindo a “estragar”. O recurso à tradição popular, a criação de novos espaços teatrais, a teatralização das lutas operárias, as tournées em circuitos paralelos, a “corrupção” da TV oficial, a colectivização do trabalho teatral, tudo isso que são os vários passos inquietos da vida de Fo, tudo isso não nos soa a nosso conhecido? Pegamos de facto no teatro de Fo com a emoção de quem toca no trabalho de um camarada e de um camarada de trabalho. Com a alegria de lutar contra um inimigo comum. Mas também com a admiração que se deve a quem nestas andanças tradicionalmente votadas à desilusão, conseguiu ser mestre, conseguiu, além do mais, ter sempre o êxito para que trabalhou, um mestre de estratégia nestas batalhas da produção teatral em terras do capital. Com o receio de quem toca em segredos que não sabemos e que não queremos “estragar”. Mas com a curiosidade de quem os quer conhecer.
Fazemos NÃO SE PAGA! NÃO SE PAGA! seis anos depois e fora da sua casa. Negando à partida pelo menos metade do que julgamos ser o seu segredo, a sua oportunidade e a sua efemeridade. Não quisemos fazer batota nem disparate e não fizémos qualquer adaptação de texto para termos portugueses (para além de alguns cortes de frases que se tornariam incompreensíveis por falta total de referente para o nosso público), nem utilizámos sequer nenhuma das actualizações – actualizações que o próprio Fo fez para a sua reposição este ano em Milão. Quisemos que a peça fosse entendida no momento e no local em que foi criada. E até na escolha do guarda-roupa tivémos preocupações desse tipo. (Se adaptámos a tradução que nos chegou às mãos foi simplesmente porque julgámos indispensável levar até ao fim a coloquialidade do diálogo).
Fazemos NÃO SE PAGA! NÃO SE PAGA! como um exemplo. Não tornamos esta peça numa peça nossa, como A Barraca fez com morte acidental de um anarquista. Fazemo-la como exemplo de comédia. Para descobrir as regras de um jogo fascinante: o jogo da subversão de um esquema tradicional de comédia de boulevard, de farsa, tradicional e conservador por excelência, em, como diz o próprio Fo, “um teatro de propaganda e provocação que apoia as lutas da classe proletária”. Para descobrir como se prega uma partida. E porque, para além de um processo fascinante e extremamente divertido, o julgamos um fenómeno muito interessante. Acreditamos, como dizíamos no programa de e NÃO SE PODE EXTERMINÁ-LO?, que “A Comédia festeja a restauração de uma ordem: encara o presente como uma vitória e festeja-o. (…) A Comédia festeja a restauração. E a Comédia tem funcionado na História do Teatro como festa das classes que se aproximam do poder.” A comédia pressupõe, de facto, uma cumplicidade geral, o reconhecimento de uma ordem, anterior à desordem cómica, restabelecida numa ordem paralela no final da comédia. Bem reconhecemos a ordem anterior a NÃO SE PAGA! NÃO SE PAGA! Mas que ordem se festeja no final com a “conversão” do operário João? E a desordem em que decorre a peça é afinal desordem cómica? Acreditemos que a restauração da ordem no final é a subversão da ordem inicial, que é a instauração da desordem, não já cómica, que aquelas mulheres e aqueles homens nas janelas com as espingardas de caça, com telhas e tijolos, são as classes que se aproximam do poder. Mas quem o acreditará também? Com que público se estabelece então o reconhecimento desta nova ordem? Com quem se estabelecem estas cumplicidades? Com quem se festejam os nossos “sonhos”? Estaremos talvez a descobrir o segredo maior do teatro de Dario Fo: a coragem de saber para quem se trabalha, ter a coragem de não trabalhar para o inimigo. Ou de não trabalhar. E se, seis anos depois, se perdeu já a alegria de partilhar tanta coisa que ainda reconhecemos NÃO SE PAGA! NÃO SE PAGA!, tenhamos a alegria de lhes pregar uma partida, de fazermos uma farsa, de nos apoderarmos do teatro deles para nosso prazer, para reinventarmos o nosso trabalho.
Luis Miguel Cintra