O Misantropo ou O atrabiliário apaixonado
de Molière
Tradução, encenação e cenografia Luis Miguel Cintra
Luzes e carpintaria Pedro d'Orey
Execução dos telões José Manuel
Execução do guarda-roupa Elisa Alves e membros da companhia
Secretária Helena Domingos
Director de cena Pedro d'Orey
Instrumentos musicais Casa Gouveia Machado
Interpretação (por ordem de entrada em cena)
Filinto Filipe La Féria
Alceste Luis Miguel Cintra
Oronte Jorge Silva Melo
Celimena Glicínia Quartin
Basco Carlos Fernando
Eliante Raquel Maria
Clitandro Luis Lima Barreto
Acasto Orlando Costa
Guarda Jorge Silva Melo
Arsinoê Dalila Rocha
Dubuá Carlos Fernando
Lisboa, Teatro Laura Alves. Estreia: 13 de Outubro de 1973
Évora, Teatro Garcia de Resende
46 representações
Espectáculo subsidiado pela Fundação Calouste Gulbenkian
O TEATRO DA CORNUCÓPIA é uma empresa teatral fundada e dirigida por Luis Miguel Cintra e Jorge Silva Meio com os seguintes objectivos, características o plano de actividades para a primeira temporada:
I. Objectivos
Tendo em vista que:
Pretende esta companhia:
II. Características
Tendo em vista que:
Esta companhia:
III. Plano de actividades
Na presente temporada conta estrear três espectáculos:
O MISANTROPO, de Molière
A ESTALAJADEIRA, de Goldoni
A ILHA DOS ESCRAVOS, de Marivaux
para o David
Pegar numa pessoa e transformá-la em actor é pedir emprestado. Se não for roubar. Tira-se à vida o actor para o pôr noutro lugar. Num palco. Para o devolver à vida quando acaba a função.
O teatro é todo assim, um ofício estranho e perverso de andar a tirar as coisas dos seus lugares para as colocar noutro - o palco, também roubado à sua condição de metros quadrados de terra.
Roubam-se à vida o lugar, as pessoas, as palavras, as coisas, os sentimentos e as ideias, ou as posições, as atitudes. Faz-se outro mundo. Mas para quê?
Para os outros verem e ouvirem e terem esse prazer de reencontrar ali, em maneiras tão esquisitas, em maneiras de teatro, as coisas que a eles pertencem, as coisas que eles conhecem. O teatro é, portanto, afinal é verdade, um espelho da vida. Certo e especial espelho para que a vida nele se reconheça.
Mas para que nele se reconheça em maneiras tão esquisitas, em maneiras de teatro. Para que a vida nele se reconheça transformada. Transformada em fingimento. Ou para que a vida nele se reconheça atrás do fingimento. Atrás de outras regras, de outras caras, de outras coisas.
O teatro deve ser assim: uma coisa morta para lembrar a vida. E assim é, mesmo quando o não quer ser, mesmo quando pensa que de reminiscência da vida passa a seu retrato fiel, ou quando passa a outro pedaço de vida, com regras diferentes das que tem o quotidiano lá fora e assim obriga o público a nesse momento deixar de ser cidadão e a tornar-se actor também, sem lhe conferir a liberdade que o actor tem, e que lhe dá cidadania, de tomar a decisão de por umas horas deixar de ser gente e de escolher a maneira de o deixar, de escolher a sua companhia, o seu encenador, a sua peça, a sua maneira de representar.
O teatro é efectivamente sobretudo uma questão moral, ou de responsabilidade. Que assume no momento em que não esquece, e não esconde, e faz questão em mostrar, que as suas regras são diferentes das regras da vida a quem as pediu emprestadas para as transformar, para as tornar num espelho. E uma responsabilidade que continua, depois de exposta esta verdade indispensável da sua própria natureza, pela escolha das regiões da vida que esse espelho espelha, e pela consciência das zonas do pensamento a que a justaposição de zonas da vida que cada espectáculo espalhará há-de levar o espectador.
Tomássemos a sério o MISANTROPO e as zonas da vida a que ele nos levaria seriam a sinceridade e a hipocrisia, seriam Alceste e Filinto, ou Alceste e Celimena mais Arsinoê e Eliante, e Acasto e Clitandro e todas as outras várias provas de que desse assunto se trata.
Mas peguemos num clássico, num texto como o Misantropo, e já o texto é transformação evidente de regras da vida. Porque há já alguns séculos foi escrito, mais evidentemente ainda que qualquer texto de agora essas regras nos saltam aos olhos e o mostram como comédia, como palavras de teatro, como coisas pedidas emprestadas à vida de outros tempos, e noutros tempos já transformadas em coisa diferente, em coisa artificiosa, em coisa fingida.
E peguemos agora nele também com regras que pedimos emprestadas ao próprio teatro, mas ao teatro de tempos diferentes, aos fingimentos que aos fingimentos do tempo de o Misantropo sucederam, e estaremos ainda a falar neste espectáculo do que o teatro é: regras e mais regras, antigas e modernas de um mesmo ofício, o de roubar a vida para a ela fazermos namoro, louvor, carinho ou censura.
E voltemos a ver o Misantropo e suas fúrias de sinceridade e amor assim expostos à sua já tão evidente condição de peça do teatro, ou de coisa postiça, e reencontraremos zonas da vida ou valores que ao longo do texto se dizem com letra maiúscula, reencontraremos a "honra e o pudor", a "galanteria e a virtuosidade", "o pensamento o coração", transformados em coisa oca, ou em mais outra regra. E veremos na "sinceridade" já não coisa da bílis ou do fleuma ou mesmo do coração, mas coisa pura e simples de teatro: hipocrisia ou fingimento, o palco. Veremos neste espectáculo, espectáculo e mais nada.
Este espectáculo mais não é do que, uma vez mais, explicação de pressupostos. Porque a isso a responsabilidade nos obriga. Porque nos parece que por aqui temos ainda de recomeçar. Porque não só nós, os que roubamos à vida, temos de saber as linhas com que este tecido se cose. O teatro é coisa pública e colectiva. E muito poucas são ainda (ou já) as regras que toda a gente saiba capazes de tornar comuns estes jogos de mentiras.
Luis Miguel Cintra