AMOR/ENGANOS
de Gil Vicente
FRÁGUA DE AMOR e FLORESTA DE ENGANOS
Tradução do texto em castelhano José Bento
Encenação Luis Miguel Cintra
Cenário e figurinos Cristina Reis
Desenho de luzes Daniel Worm d'Assumpção
Colaboração dramatúrgica João Nuno Alçada
Assistentes de encenação Francisco Nascimento e Pedro Marques
Assistente para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos
Director de montagem Jorge Esteves
Montagem de luzes Pedro Marques com Rui Simão
Operação de luzes Pedro Marques
Construção e montagem João Paulo Araújo e Abel Fernando
Contra-regra Rui Pragana
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Conceição Santos, Julieta Carvalho, Maria Barradas, Piedade Duarte e Teresa Cavaca
Professor para a gaita de foles Paulo Marinho
Conservação do guarda-roupa Alice Madeira
Cartaz Cristina Reis
Secretária da Companhia Amália Barriga
Interpretação
FRÁGUA DE AMOR
Peregrino Luis Miguel Cintra
Romeiro Luís Lima Barreto
Vénus Rita Loureiro
Preto António Pires
Cupido Duarte Guimarães
Ferreiros Ricardo Aibéo (Mercúrio) Almeno Gonçalves (Júpiter) Luís Lucas (Saturno) Nuno Lopes (Sol)
Serranas Solange F. (1.ª Serrana) Sofia Marques (2.ª Serrana) Rita Durão (3.ª Serrana) Catarina Requeijo (4.ª Serrana)
Justiça Márcia Breia
Frade Luís Lima Barreto
1.° Pagem Rui Pragana
Parvo Francisco Nascimento
2.° Pagem Pedro Marques
FLORESTA DE ENGANOS
Filósofo Luis Miguel Cintra
Parvo Francisco Nascimento
Mercador Luís Lucas
Moça Sofia Marques
Escudeiro disfarçado de Mulher Viúva Almeno Gonçalves
Cupido Duarte Guimarães
Apolo Nuno Lopes
Rei Telebano Luís Lima Barreto
Grata Célia Rita Durão
Doutor, Juiz-mor do Reino Luis Miguel Cintra
Moça Solange F.
Velha Márcia Breia
Pastor Ricardo Aibéo
Duque Peregrino Francisco Nascimento
Príncipe da Grécia António Pires
Ventura Peregrina Rita Loureiro
Música As canções do espectáculo e gaita de foles são o resultado de improvisações musicais do grupo de actores.
Colaboração de Serviços Florestais da Câmara Municipal de Lisboa, Maria do Carmo Vasconcellos, Associação Portuguesa para o Gosto e Divulgação da Gaita de Foles e José Domingos Morais
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 17/02/2000
43 representações
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
Apoio de RDP, Antena 1
A primeira ideia deste espectáculo surgiu curiosamente de um projecto "europeu". Uma companhia espanhola amiga pedia-me um projecto capaz de juntar as duas companhias e de assim se integrar num desses modelos culturais que a Europa apoia. Apetecia-me um projecto ibérico e sonhei com um espectáculo bilingue em que os jogos da nossa côrte luso/castelhana do século XVI ganhassem nova vida com um trabalho de jovens actores portugueses e outros espanhóis, tudo ensaiado na euforia de estar em Madrid, minha terra natal. A FRÁGUA DE AMOR e a FLORESTA DE ENGANOS eram textos para isso. E a personagem comum do menino Cupido, fugido de sua mãe Vénus Deusa para fazer tropelias no mundo, permitia a ligação dos dois autos e lançava a ponte para alguma poesia. O projecto foi chumbado. Para espanhóis, gente forte no drama, é pouco. Perante Calderón, Gil Vicente será coisa de crianças. Paciência.
Talvez o quisesse a Ventura. E talvez tivessem razão os espanhóis. Gil Vicente é autor da nossa terra. Na Espanha é tudo maior. Mas ficou na cabeça a ideia daquela "brincadeira". Sou parvo mas sou teimoso.
Eu sei, que nos perdoe mestre Vicente, mas este projecto nunca foi coisa séria. O que sempre nele procurámos, mais do que encenar estas duas suas peças, foi pôr-nos, actores, a brincar, a inventar outro jogo que era, eu sei, mais nosso que dele. Mas, honra lhe seja feita, foi muito com os seus textos que ganhámos este gosto de brincar e um jeito muito da casa de encenar desta maneira. Gil Vicente é mesmo autor da casa. E era em nossa casa que faria mais sentido aquele disparatar. E desta vez traduzido.
Quando fizemos o AUTO DA FEIRA, quisemos muito ainda "encenar" o seu auto, clarificá-lo, tornar evidente a sua relação com o seu tempo, a circunstância que motivou a sua invenção. Fizemos até um espectáculo em duas partes, encenando primeiro muitos dos documentos do tempo que ajudariam a entender a confusão, o clima de fim do mundo, que o Saque de Roma por Carlos V teria provocado nas cabeças dos católicos romanos e teria motivado a "função". Percebemos para sempre que o teatro de Vicente era obra de momento, teatro do seu tempo, político por excelência. Mas já nessa altura não resistimos a com ele "brincar". As nossas barbas do Tempo, as nossas asas do Anjo, a nossa tendinha do Diabo e tanta outra coisa, eram já um gosto de recriar simbologias, de tornar presente uma cumplicidade com o público, inerente a este teatro e que sempre ficará por encenar se a não tornarmos moderna. Este teatro imediato obriga a nova invenção se não quisermos passar ao lado da sua mais profunda natureza. Por isso tanto o ilumina conhecermos a data, o lugar, a festa para que cada auto foi escrito. Este teatro não é literatura, é, mais do que nenhum outro, um roteiro para espectáculo. E a partir da nossa COMÉDIA DE RUBENA, mais e mais, continuando com O TRIUNFO DE INVERNO, onde até de República falámos, nos fomos apropriando dele até se tornar nosso. O teatro de Gil Vicente, no fundo inacabado naquilo que dele restou, a sua escrita, permite-nos como poucos, quase obriga, a uma forma de fazer teatro que não é "encenação", é outra escrita, é um exercício dramatúrgico de construção de espectáculos naquela parte que nos cabe na criação de sentidos: a inteligência e a imaginação do actor, o movimento, a invenção dos espaços, dos objectos, das formas, das cores, dos sons, da luz. A textos não dramáticos fomos doutras vezes buscar o material para este "labor": os textos de Raul Brandão, um poema de Ruy Belo, a "Crónica Geral de Espanha". Mas com Gil Vicente é a própria escrita que pede essa invenção, outra escrita com outro alfabeto.. E que quer esta especial relação do teatro com o texto.
Os dois textos de Vicente em que agora pegamos são talvez dos mais opacos. Sabemos que A FRÁGUA DE AMOR, de acordo com o que Luís Vicente indicou na"Compilaçam" é uma "Tragicomédia representada na festa do desposório do muito e poderoso e católico Rei de gloriosa memória, Dom João, o terceiro deste nome, com a Sereníssima rainha Dona Caterina, nossa Senhora, em sua ausência, na cidade d' Évora, na era de Cristo Nosso Senhor de 1525. A qual tragicomédia é chamada Frágua d’Amor. E o Castelo de que aqui se fala é per metáfora, porque se toma castelo por Caterina. II" (E logo aqui um erro: o casamento foi em Agosto de 1524. Leia-se, portanto, quatro por cinco na data indicada na Compilação). Todo o auto parte da metáfora do Castelo, metáfora frequente para a mulher, baluarte de virtude. E que brinca com Castela, de onde viria a virtuosa rainha, nada menos que a educadora e regente do neto D. Sebastião, esse, o de Alcácer Quibir, e ela, filha de Joana a Louca. E quem é o Júpiter que fez tal castelo "com raios de Apolo ardente por sua mão divinal"? O pai de Dona Caterina? Ou será já outro o castelo onde se diz que Cupidoentrou? Será a Espanha, e Júpiter por metáfora seria então o próprio Imperador Carlos V, a cuja mão não faltaria quem chamasse divina? A FRÁGUAé toda ela uma adivinha, um jogo de cumplicidade com o público daquela festa de Évora e que hoje se perdeu. Da FLORESTA DE ENGANOS o que sabemos é que também terá sido representada em Évora, doze anos mais tarde, em honra de um pequeno príncipe de cinco anos, filho da mesma Senhora Dona Caterina, o príncipe Manuel, que havia de morrer um ano depois. Mas tais históricos pretextos são já de todo ilegíveis e o que nos chega a nós são dois textos de sentido obscuro, duas construções simbólicas à espera de novas chaves. Se naFRÁGUA ainda percebemos a vontade de mudar os portugueses para estar à altura de um casamento com estrangeira ilustre, na FLORESTA é mesmo tudo adivinha. Porque foi que naquele dia se falou de mentira? E se mostrou perdido e castigado nas leis do mundo o deus do Amor? Mas esquecido o pretexto, fica-nos um universo simbólico pronto a ser manipulado pelo nosso gosto, pelas nossas obsessões. E toca-nos o coração de hoje, dorido de fera experiência, pensar que em honra de um menino se fale do "mundo triste de agora" como de um templo de engano. O que nos importa agora é que em ambos os textos um deus desceu à terra, o menino deus de Amor, porque dela se apaixonou, nela quis entrar, para mudar os corações e para dar corpo ao corpo. E toca-nos que nas duas peças sempre saia perdedor. Na FRÁGUA é mal entendido na sua louca ironia, na FLORESTA encontra um mundo com demasiados olhos para quem nasceu cego em seu natural. Na sua carga simbólica e na sua opacidade, os dois textos foram mais que em qualquer dos outros autos que já representámos, o motor de mil jogos de sentido, de brincadeiras dramatúrgicas com assuntos afinal graves demais para que sem humor os ousemos abordar, e o motor do prazer de os inventar num mundo normalizado em que o símbolo passou a ser código sem lugar para hesitação.
E foi assim que demos por nós a inventar um conto: "Os desastres de Cupido. É na FLORESTA DE ENGANOS, metáfora do Mundo, a que preside, como procuradora de Deus, a deusa Ventura, que tudo decorre. O menino Cupidofugiu da deusa Vénus, sua mãe, e desce à terra para fazer a festa: com um grupo de Serranas e de Planetas transformados em ferreiros de uma forja do Amor, vem mudar os corações dos portugueses, transformar os homens, pôr o mundo a direito, dar-lhe alegria. Mas o mundo é uma FLORESTA DE ENGANOSem que o próprio Cupido se vê enredado. Na selva espinhosa do mundo, Cupido aprende a enganar para conquistar o amor de Grata Célia princesa, mas aVentura é mais forte e rege os homens por outras leis de um mais contraditório Deus. "Quis Deus e quis a Ventura que ficasse Cupido para sempre desterrado e preso e o mundo sem Amor". Começámos por aqui. Mas não bastou. Houve outras versões que deu gosto inventar. E bem menos moralizantes. Pela mão do leviano Cupido, depressa Planetas ferreiros e musasserranas se perdem em gozos de amor e se tomam em sofisticados foliões: descobrimos que, mais que mostrar a um preto que mudar a côr da pele não transforma o coração, ou passar de velho a novo, ou emendar a Justiça, ou passar de frade a leigo, se entregam eles sobretudo a um gratuito jogo de trocar identidades e cantar a seu prazer. E não fosse a lei da Ventura, também era mesmo uma festa a história dos enganos da Floresta, anunciada peloFilósofo, e com as suas trocas de identidade, o auto estaria mesmo mais perto de uma "festa de alegria que de novo se inventou" que de qualquer repreensão, que para todos é enojosa. Até Grata Célia, presa ao pai, e atada agora, por artes de Cupido, a uma serra Mineia, perdendo o viço que tinha, não sabe já quem é, e aprende verdades bem pouco decentes sobre o prazer do engano."Como um rio furioso / são os homens sem descanso; / pois onde corre mais manso, / aí é mais perigoso, / por ser fundo tal / remanso. / E, pelo cheiro, / são como um anzol matreiro / quando se veste de engano; / que em todo o tempo do ano / por fora é todo fagueiro / e por dentro é todo engano;" Que festa de alegria é perder-se! Nos jogos com a identidade, que na FLORESTA DE ENGANOS é sexual até mais não, encontrámos outra história. E tornando o Prólogo da FLORESTA, essa genial ideia, (ou topos literário, chamem-lhe o que quiserem) de uma personagem dupla ou bi-face, esse Filósofo para sempre atado a um parvo na "cadeia tenebrosa" da condição humana, em prólogo também da FRÁGUA, identificando-o com esse eterno peregrino que anuncia a entrega do Castelo a Cupido, encontrámos para o espectáculo um novo ponto de vista, um nosso narrador, uma nova unidade. Seja ele o João-que-chora e o João-que-ri, Heráclito e Demócrito, o velho e a criança, ou o sábio e o louco, ambíguo será com certeza, e em histórias ambíguas se perde, e nessa ambiguidade encontra prazer, perdido para sempre nessa dupla condição, sem se querer ausentar. A história passa a ser outra: talvez um pequeno decameron. Para vosso entretém.
Levados pelo texto vicentino, chegámos pelo menos até aqui. Nesta nossa "brincadeira", ficámos com certeza mais longe da ideia do desconcerto do mundo, que do mundo que vemos nos nossos sonhos, ou nos contos tradicionais, aquele que como um fantasma trazemos cá dentro do corpo, onde sempre anda o desejo aos trambolhões. E depois? É mal? Foi um pouco como se deu com a princesa, a quem calhou um bicho quando por fim ficou mulher.
Deixámo-nos levar, sem medo, à toa. Fomos mais longe do que pensámos no projecto original. A floresta azul de símbolos que construímos e em que decorre este nosso espectáculo-com-escada-para-o-céu ficou imagem do mundo mas talvez, e ainda bem, também, e como sempre, lugar de jogo para um grupo de actores de quem não me canso de gostar, e também como outras vezes, paisagem mental: a cabeça dividida de quem a fingir que morre, toma gosto em deixar de ser quem é, em deixar-se perder, porque, por mais que faça, é nos enganos que encontra mais amor.
Luis Miguel Cintra