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Historial

25 - Simpatia

Ficha Técnica

 

Simpatia
Escola de Dramaturgia de Florença dirigida por Eduardo De Filippo

 

Tradução e encenação Luis Miguel Cintra

Cenário e figurinos Cristina Reis

Assistente de cenografia Linda Gomes Teixeira

Montagem Fernando Correia

Iluminação Luis Miguel Cintra e José Eduardo Páris

Gravação da banda sonora João Coelho

Direcção de cena Márcia Breia

Guarda-roupa Conceição Quadrado

Operação de luzes e som José Eduardo Páris

Contra-regra Márcia Breia, Raquel Maria, Francisco Costa, Luís Lima Barreto e toda a companhia

Colaboração Ana Jotta

Interpretação

Lúcia, mulher da limpeza Dalila Rocha 

Romeu, o empregado de confiança Francisco Costa 

Salvador, o guarda-livros Gilberto Gonçalves

Carlos, o “gorila” Luís Lima Barreto 

Túlio Franchi, joalheiro Luis Miguel Cintra 

Juliana Bossi, irmã de Túlio e mulher de Alberto Raquel Maria

Primeira cliente Márcia Breia 

Senhora Fortuna, cliente Alda Rodrigues 

Senhor Fortuna, o seu marido Gilberto Gonçalves

Alberto Bossi, sócio de Túlio Rogério Vieira 

Condessa, cliente Dalila Rocha 

Senhora de Lollis, cliente Alda Rodrigues 

Amália, sua filha Fátima Madeira

Paula Beltrami, estudante Márcia Breia 

Primeiro bandido Francisco Costa 

Segundo bandido Luís Lima Barreto 

Enfermeira Alda Rodrigues

Repórter Francisco Costa

 

Colaboração de Bolos Dan Cake, Instituto Italiano, Mininha Soares, M. Helena Serra, M. Helena George, M. Luisa Rodrigues, Brás e Brás, Paola Porru, Monique Rutler, Natália e Carlos Fogaça, Isolina Duarte, Maria Adelaide Cintra, Teatro da Graça e José Eduardo

 

Lisboa:  Teatro do Bairro Alto. Estreia: 06/07/1984

66 representações

Companhia subsidiada pelo Ministério da Cultura

Este Espectáculo

Eduardo De Filippo está nos antípodas de Heiner Müller.simpatia é o contrário de a missão. Se Müller só acredita naquilo que no teatro é uma experiência vital, se a ele lhe repugna trazer para o teatro imagens já conhecidas da vida, Eduardo toda a vida quis pôr no palco imagens de vida reconhecíveis, o teatro de Eduardo só faz sentido para quem já o viveu. Müller escreve teatro como pretexto para se expôr. Despuradamente. Eduardo escreve comédias para atrás delas se esconder. Müller desconhece ou combate a tradição, é o cantor da traição, Eduardo é a tradição, a fidelidade em pessoa. Müller não inventa a situação, instala o teatro na palavra, Eduardo só trabalha a situação, traz as palavras para o palco. Müller escreve a morte, Eduardo sente-se apóstolo da vida. Müller só fala de política, Eduardo reclama um teatro apolítico. O teatro de Müller é o teatro do mal-estar, o de Eduardo é o do prazer. Müller, tem uma arma na mão. Eduardo terá com certeza um ramo de flores.

Depois de termos feito a missão, de tão apaixonadamente nos termos metido por esse texto dentro, de tão claramente termos querido falar sobre o mal-estar do nosso tempo, quando já nos preparamos para pegar no ricardo iii de Shakespeare, porque nos lançamos a pôr em cena uma peça como simpatia? Tanto mais que nunca defendemos que os actores devessem fazer de tudo? Para captar público? Como? Se simpatia é uma peça doce, à antiga, tão obviamente fora do tom agreste dos nossos dias? E porquê? Se a missão foi um dos nossos últimos espectáculos que mais afluência de público teve e onde mais claramente o “nosso público” se reconheceu? Por cansaço de uma tão violenta abstracção? Um pouco, talvez, confessemo-lo. Porque não? E continuando com razões de ordem interna, também por treino: é indispensável aos actores continuar a saber o que são personagens convencionais, o que é a construção de uma situação, o que é o ritmo do diálogo e da contracena, é indispensável a quem inventa os espaços, as colocações em cena, não esquecer o que é a construção de um ambiente, a iluminação de um palco à italiana, a justeza dos objectos de cena, a descoberta de uma justa arquitectura de ilhargas, portas e janelas falsas. Porque gostamos de teatro? Porque temos saudades do teatro da caixinha? Do pano de boca a abrir e a fechar? Pouco. Não é essa a principal razão. Eduardo não é um qualquer autor. simpatia não é um boulevard.

Talvez, acima de tudo, para desfazer equívocos. Para pôr os pontos nos is. Dissemos já muitas vezes que não acreditamos em regras nenhumas para se fazer teatro. Dizemo-lo outra vez: não é a habilíssima utilização de convenções teatrais que nos levam ao teatro de Eduardo De Filippo. Eduardo que representou mais do que ninguém, sabe, como nós também já vamos aprendendo, que o teatro é fingimento, que pano de boca a mais, pano de boca a menos, sofá à direita ou mesa esquerda, deixa a mais ou deixa a menos, o que fica do teatro é só uma coisa: a atitude, a posição moral. Para Eduardo, ao contrário do que acontece com Pirandello, o teatro é só teatro. A vida não está ali. Eduardo De Filippo terá dito uma vez “Teatro significa viver a sério aquilo que os outros na vida representam mal”. Disse isto e repetiu ao longo da sua carreira de já 80 anos de teatro a relação entre teatro e vida, entre verdadeiro e fingido, a oposição do bem ao mal. É a sua enorme teimosia em trazer para o palco questões de ética, essa espécie de remorso de passar a vida longe dela, sobre um palco, a humildade com que para o palco só traz da vida a imagem mais simples e de maior denominador comum ao maior número de “almas”, a perversa inteligência com que escolhe a máxima convenção para conseguir a máxima verdade, é a sua eterna hesitação entre o teatro e a verdade que me fascinam nas suas comédias, na sua arte de actor. A sua autoridade moral.

Não queremos ficar presos a uma imagem de marca. Não queremos ser de “vanguarda”. Queremos que de uma vez por todas a vida se liberte de todos os tabiques, de todas as regras, queremos a verdade. O que nos interessa não é o novo e muito menos a novidade, o que nos interessa é uma nova maneira de viver. Só isso nos interessa.

E por caminhos tão opostos é essa a Roma a que tanto Müller como Eduardo vão dar. Caminhos de utopia. Se fazemos agora esta peça de Eduardo é sobretudo para falar disso ao muito “respeitável público”: apontar outra vez na direcção de “Roma”. Por uma razão moral. Só que os dois caminhos são de facto diferentes. E o caminho de Eduardo é o caminho humilde, o atalho do costume. Não é a “rua de aldeia no Perú” do monólogo do elevador de a missão. É o carreirinho antigo de que já ninguém se lembra. Decididamente é pela auto-estrada que não gostamos de viajar. A autoridade do caminho de Eduardo vem da sua extrema modéstia. Eduardo não traz ao teatro nada de novo senão uma nova maneira de o viver. Para nós, representar o teatro de Eduardo significa pôrmo-nos a aprender uma arte antiga, formas de estar em cena, técnicas de que Eduardo é um grande mestre, que aprendeu representando todas as noites durante anos e anos, com a humildade suficiente para perceber que mais e mais havia a aperfeiçoar. Para falar da simpatia? De conflitos tão pequeninos? “Insignificantes perante os danos que podem provocar os grandes profissionais”, como o Túlio da simpatia diz no fim da peça? Sim. Porque tal como não há grandes e pequenos problemas na arte do teatro, um mover de olhos é tão importante como o maior dos telões pintados, ou mais até, também na vida não há coisas grandes e pequenas. A realidade, felizmente, não sabe o que são hierarquias. Vivemos à todos os níveis. Eduardo escreve aos 80 anos uma comédia sobre uma ninharia, a simpatia, tão ninharia que, como também diz Túlio, “não existe”, mas que, no entanto, talvez domine a nossa maneira de viver. Escreve-a com os seus alunos, para que uma tradição não se perca, um saber. Como faziam os que tinham um ofício, uma “arte”. E quem escreveu a comédia? Eduardo? Ou os seus alunos? Quem a assina? Nem na edição se percebe. Para quem até - já é senador, concordemos que não é pouca humildade.

E quem fala na peça? Os seus personagens? Quem é Túlio Franchi? O joalheiro de uma cidade qualquer? Ou o próprio De Filippo? Serão antes os seus alunos que falam agora a mesma linguagem de todas as comédias do mestre? O discurso moralista de todo o último acto é uma fala de comédia? É o discurso do autor? Ora aí está um dos outros grandes segredos que apaixonadamente amamos no teatro de Eduardo: a sua ambiguidade. Porque Eduardo é actor. Só um actor pode entender que nunca se saberá se é ou não ele quem fala pela boca do personagem. Só um actor poderá entender o prazer de reduzir a um nada a barreira entre si e o personagem, ou o prazer de a esconder. O prazer de brincar na linha de fogo da verdade e da mentira, a tremenda responsabilidade que isso implica. A discussão final na peça sobre o poder da simpatia, é a meus olhos uma transposição de uma discussão igual sobre o poder do actor. (Escreveu-a Eduardo noutra peça: a arte da comédia, uma obra-prima que um dia representaremos e de que já neste espectáculo não resistimos a utilizar um troço.) A responsabilidade que para Túlio Franchi implica utilizar a simpatia na relação com os outros é a mesma que para Eduardo, para o actor, implica na sua personagem expôr a sua própria pessoa. E Eduardo, o maior actor do mundo, sabe que para representar não pode deixar de o fazer, é esse o preço do teatro, o preço do prazer. Talvez por aí se entenda que a grande, a enorme autoridade moral que reconhecemos em Eduardo lhe vem da sua enorme modéstia, de toda a vida se recusar a tratar das grandes questões, de toda a vida só ter falado dos pequenos personagens, dos pequenos problemas, do pequeno grande mundo das nossas consciências. Só um actor entende que para falar verdade se tem de esconder. Mas que para falar verdade terá de falar de si, das coisas que conhece. Que essa ambiguidade seja a arma da verdade, só um actor pode saber. E só grandes consciências terão como Eduardo coragem para só a usar até aquele ponto em que é verdade mesmo, em que o teatro não se torna em processo, em efeito, em mentira, em que não larga a vida.

O teatro de Eduardo é o prazer do pudor. Pudor de se impôr, de se expôr, de sair das convenções, de falar de política. Na comédia encontra Eduardo a forma mais discreta de intervir. Escondendo a atitude moral atrás do personagem, recorrendo a uma arquetípica estrutura social, a um sistema antigo de relações humanas e códigos morais, já (ou sempre) inexistente mas ainda suficientemente reconhecível como desejo de ternura para sustentar a convenção da desordem e da reconciliação cómicas, para veicular uma corajosa oposição à mecanização, à profissionalização do nosso tempo, ao esvaziamento da pessoa humana. Que, afinal, sejamos ambíguos, como Eduardo, é também a impossibilidade do teatro, a morte do actor. Eduardo tenta o último caminho possível para ainda comunicar com os outros. Com aquele cepticismo de quem já não acredita mas com a teimosia de quem quer sobreviver. Por linhas tortas, Eduardo passou toda a sua vida na luta contra a morte. Tem 84 anos. Bravo, Eduardo.

E tudo isto a brincar. Foi a brincar também que quisémos fazer este espectáculo, docemente, com a ternura das pequeninas descobertas. Partindo do princípio de que Eduardo sabia tudo, de que se no texto a poltrona está à esquerda, é à esquerda que deve ficar, que se Eduardo escreveu uma pausa, é pausa que se deve fazer. Não fomos seus alunos na Escola de Florença, somo-lo agora a tentar representar. Respeitámos todas as convenções de que Eduardo se serve, o palco à italiana, a boca de cena, o pano de boca. Eduardo não faz sentido sem elas. Quisémos no nosso jogo de actores, na maneira de pintar as paredes, nas cores do guarda-roupa, na indefinição da data que escolhemos para não situar o texto, até na geometria das paredes dos diferentes lugares, fazer notar o arquétipo, a inocência das regras em que o trabalho de Eduardo e também aqui o nosso assentou. Quisémos ser também humildes. Por isso mesmo nunca tanto toda a companhia trouxe para os ensaios tanta verdade de si. O que está no palco é o que cada qual é. Nunca tanto toda a companhia trabalhou a encenação e o trabalho uns dos outros. Acima de todos um companheiro meu de entusiasmos por um teatro assim, o Gilberto Gonçalves, a quem, felizmente, caberá fechar o espectáculo. E nesse trabalho descobri outro segredo de Eduardo na luta contra o mal-estar.

Como se dizia antigamente: Valeu a pena!

 

 

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de Paulo Cintra ©





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