Comédia de Rubena
de Gil Vicente
Encenação Luis Miguel Cintra
Assistente de encenação Luís Lima Barreto
Colaboração dramatúrgica João Nuno Alçada
Colaboração filológica Luís Filipe Lindley Cintra
Colaboração para a língua castelhana Maria Vitoria Navas
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistentes para cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Miguel Mendes
Montagem Fernando Correia
Ajudantes de montagem Amílcar Correia, Fernando Santos Correia e Mário Correia
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Aline Sêco, Antónia Costa, Delfina Silva, Ofélia Lima, Piedade Duarte e Teresa Cavaca
Adereços especiais João Calvário
Outros adereços Alfredo Martinho
Iluminação Luis Miguel Cintra e José Eduardo Páris
Operação de luz e som José Eduardo Páris
Colaboração musical Manuel Morais
Preparação musical dos actores Luís Madureira
Contra-regra Alfredo Martinho
Interpretação
Cantor Mário Marques
Licenciado Luis Miguel Cintra
Rubena Luísa Cruz
Benita Isabel Ribas
Parteira Márcia Breia
Diabos:
Legião Rogério Vieira
Draguino Luís Lucas
Caroto Luís Lima Barreto
Plutão Gilberto Gonçalves
Feiticeira Luis Miguel Cintra
Ama Isabel Ribas
Fadas:
Ledéra Rosário Carichas
Minéa Madalena Lua
Cismena criança Luísa Cruz
Pastores:
Joaninho Miguel Guilherme
Pedrinho João Romão
Afonsinho António Fonseca
Cismena Luísa Cruz
Clita Isabel Ribas
Beata Márcia Breia
Lavrandeiras:
Brígida Rosário Carichas
Sequeira Madalena Lua
Andresa Rita Loureiro
Felícia Cristina Cavalinhos
Serrana Margarida Tavares
Oribela Maria d'Aires
Felício Luís Lima Barreto
Príncipe da Síria Luís Lucas
Dário Ledo Rogério Vieira
Crasto Liberal Gilberto Gonçalves
Afonso, parvo Mário Marques
Músico Gilda Costa
NOTA: Isabel Ribas foi substituida por Maria João Luís
Apoio de Maria Emília Correia e António Lopes do Rego
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 14/04/1991
Bruxelas: Théâtre Varia/Europália'91
Udine: L'École des Maîtres
66 representações
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
Pensámos muito, quando trabalhámos o AUTO DA FEIRA, na sua primeira representação. Percebemos como se tratava de um auto político percebendo a relação do auto com o saque de Roma, imaginando um espectáculo para o paço sobre acontecimentos imediatos. O AUTO DA FEIRA era um texto sobre a vida pública, sobre regras da vida social. A partir daí falámos no espectáculo também de nós. De uma Babilónia do nosso tempo. Experimentámos novas maneiras de estar em comum com o público. Tentámos “traduzir” uma cumplicidade com o público que a dramaturgia nos revelava no texto original, para maneiras contemporâneas, para uma reinvenção “à nossa moda” da relação palco-plateia. Não foi o mesmo caminho que seguimos para a RUBENA. Nem foi um espectáculo do mesmo tipo que quisemos fazer. Sabemos menos sobre as circunstâncias em que primeiro foi apresentada. Pouco nos revela que tenha sido escrita para o jovem príncipe João, futuro João III, por ocasião das terceiras bodas de D. Manuel. As referências do texto a personagens contemporâneas como as referências às mancebas de frades e curas feitas pela Feiticeira e pelos Diabos, ou as insinuações aos amores dos notáveis feitas pelas Lavrandeiras são quase todas elas graças demasiado privadas. Não sabemos porque a protagonista se chama Rubena e sua filha Cismena, “nome novo em terra agena”. Até o valor que reconhecidas inovações culturais como a própria estrutura da Comédia ou as eventuais brincadeiras com os bruxedos ou com a poesia maneirista nos escapam e não nos revelam muito sobre a natureza de um texto como este. Sabemos que a “Tierra de Campos” onde começa a história é em Castela mas que é acima de tudo aquela terra longínqua onde começam romances como quem diz “em tempos que já vão”. A COMÉDIA DE RUBENA é um texto distante. Uma peça longínqua, antiga, fechada. É uma peça secreta, íntima, privada.
Nela reconhecemos coisas tão antigas como a lírica tradicional ou os romances de cavalaria. Nela ainda há príncipes tão distantes que não sabemos se são da Escócia como diz a didascálica se da Síria, como se diz no texto. Naquela história há ainda fadas e há quem morra de amor. O Eco ainda é uma pessoa. E fala-se que há bestas selvagens que amamentam crianças como aconteceu a Rómulo e Remo. E há feiticeiras boas e diabos preguiçosos. E há quem morra de amor. É uma história tão antiga que nela reconhecemos coisas que ficaram muito secretas na nossa imaginação, que transformámos em sonhos, que nos habituámos a colar às histórias das crianças e que são pesadelos da nossa vida madura.
Foi esta peça mágica, interior, que nos interessou. E foi este espectáculo que quisemos fazer, um espectáculo sobre coisas antigas que estão no imaginário contemporâneo, meio a sério, meio a brincar, um espectáculo sobre a nossa maneira de sentir uma história tão antiga como esta. Reconhecemos na rubena passagem do Inverno ao Verão, das Trevas para a Luz, típicas da estrutura da comédia. Reconhecemos como histórico o propósito moralizador sobre as relações dos homens e das mulheres que leva ao reconhecimento final do casamento como única via, reconhecemos no destino casto da Cismena a redenção do destino pecaminoso da mãe. Mas não caminhamos no nosso espectáculo a par com a reconciliação final da comédia. Arrepia-nos o percurso exemplar de Cismena e sofremos com dó da rubena. Ao desdobrarmos na mesma actriz os papéis da mãe Rubena e da filha Cismena é muito menos para criar uma oposição de mal e bem que não aceitamos já do que para desdobrar numa única pessoa, numa só sensibilidade, um catálogo de possíveis fantasmas, medos, hipóteses de vida, para, no fundo, desconstruir a estrutura romanesca e substitui-la por uma estrutura poética, ou irónica. Pela mesma razão, aproveitando o facto de serem em número de quatro os diabos que atormentam Rubena e quatro os pretendentes que cortejam Cismena, distribuímos os papéis pelos mesmos actores, sobrepondo as duas imagens, ou sobrepusemos as duas criadas e as duas comadres, a Parteira e a Beata.Interiorizámos toda a narrativa em momentos mentais de, no fundo, uma única mulher, talvez Eva, protagonista e sujeito do espectáculo. O próprioLicenciado narrador fará parte desse mundo mental e se transforma em Bruxa, em comadre também, muda de sexo, para a nova hipótese de ficção, para dar vida impossivel à filha do pecado. E perde a sua autoridade de narrador ao desdobrar a sua omnipresença com a de um bobo/cantor, também carrasco mental da pobre Rubena.
Porque a Rubena é uma história de mulheres e a história de um pecado. As dores de parto confundem-se com o remorso, com a culpa. Culpa de “burlar y reir”. Arubena fala-nos de proibições, de repressão interior. Para nós toda a peça se transforma num desdobramento de imagens dessa mesma repressão. Como se a culpa se transformasse em loucura ou em alucinação.
Mesmo a cena dos pastorinhos com Cismena menina, cena de pausa, sonho de inocências, zona neutra, castrada, purgatório, zona intermédia na passagem do mal para o bem, a integrámos nessa grande desconstrução. A mulher imagina-se criança. Os homens não são já monstros ou demónios, ou tipos, ou ameaças. Mas nós quisemos que fossem sexuados. Tratámos essa cena como uma Arcádia de actores a brincar, guardados por Fadas que são mu-lheres de outros costumes, e de outras terras onde se dá mais liberdade à vida dos sentidos. Aí Cismeninha encontra gente para “burlar y reir” mas também aí não sabe ou não pode ficar.
Coisas todas elas que se passam na cabeça, como afinal uma parte tão grande da nossa vida. E na cabeça nos fecham dos outros e do mundo. Nos impedem de viver. A rubena para nós foi também uma imagem da solidão.
Quisemos um espectáculo íntimo, um pouco confessional. O cenário que construímos é um pouco um nosso quarto escuro; passado com coisas e pessoas que nos ameaçam ou ferem ou de que temos medo, como nas memórias, como nos pesadelos. Mas como sempre acontece com Gil Vicente, nenhuma regra, nenhuma convenção, nenhuma ideia vence a força das próprias coisas. Custa levar a sério a história de Rubena e de Cismena. É o humor que vence, a simplicidade, uma enorme franqueza. Todo o propósito moralizador, seja em que sentido for, cede perante uma tão grande confiança na vida. Foi isso que nos aconteceu também. O nosso beijo final ou as pernas da criada Clita são, como afinal a peça é, ou como nós a sentimos, um grande elogio do prazer, uma vontade de liberdade. E o nosso “pesadelo” gostava eu que acabasse por ser só um elogio da mulher, geradora de vida, geradora de alegria. Porque “Tu sola, Sancta Maria Virgo, inviolata permansisti”. “Ante omnia amor”.
Luis Miguel Cintra