A ILHA DOS MORTOS ciclo Strindberg
3. A Sonata dos Espectros
Teatro de Câmara. Opus 3
de August Strindberg
Texto português José Camões
Colaboração Inga Gulander
Encenação Luis Miguel Cintra
Assistente de encenação Manuela de Freitas
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistente de cenografia Linda Gomes Teixeira
Música Paulo Brandão
Piano Luís Pinto
Harpa Fausto Dias
Montagem Fernando Correia
Iluminação Luis Miguel Cintra e Cristina Reis
Montagem eléctrica e operação de som e luz José Eduardo Páris
Guarda-roupa Emília Lima, Alfaiataria Roma e Alfaiataria Rodrigues
Costureiras Clotilde Dias, Maria Quadrado, Noémia Rosa, Graça Gonçalves e Antónia
Director de cena Márcia Breia
Interpretação
O Velho, director Hummel Ruy Furtado
O Estudante, Arkenholz Diogo Dória
A Leiteira (uma visão) Raquel Maria, Márcia Breia
A Porteira Alda Rodrigues
O Morto, cônsul Luis Miguel Cintra, António Fonseca
A Mulher de Negro, filha do Morto e da Porteira Márcia Breia
O Coronel José Manuel Mendes
A Múmia, mulher do Coronel Raquel Maria
A Filha, da Múmia e do Velho Madalena Pinto Leite
O Aristocrata, barão Skanskorg, noivo da filha da Porteira Luís Lima Barreto
Johansson, criado de Hummel Francisco Costa
Bengtsson, criado do Coronel Gilberto Gonçalves
A Noiva, antiga noiva de Hummel, uma velha de cabelo branco Manuela de Freitas
A Cozinheira Alda Rodrigues
Apoio de Solveig Nordlund, Conservatório Nacional, Braz e Braz, José Gabriel Trindade Santos, Luís Lindley Cintra, Câmara Municipal de Lisboa, Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, João Coelho e Vasco Pimentel
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 23/04/1986
45 representações
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
Há um momento, antes da morte, em que passamos toda a nossa vida em revista. Diz Strindberg a propósito de a sonata dos espectros. Diz que a sonata é um pouco isto. a ilha dos mortos, o fragmento dramático escrito por Strindberg no mesmo ano de 1907 que resolvemos tomar como prólogo e base do nosso ciclo, começa também assim: um personagem passa em revista toda a sua vida. Só que esse personagem se chama O Morto e tem essa visão da sua vida no momento depois de morrer. É uma visão fragmentária. São frases, gestos, momentos, personagens que adivinhamos. Como é fragmentário o mundo que nos é dado a ver na sonata: personagens esboçados, adivinhados, frases soltas, gestos de todos os dias, ou gestos fatais. Na a ilha dos mortoS eles pertencem ao passado de um personagem, O Morto, e é ele que os vê; na sonata eles são-lhe revelados por outro personagem e pertencem ao passado deste outro, mas são os mesmos fragmentos.
Tanto numa peça como noutra um personagem encontra outro que o ensina. Na ilha um morto encontra um mestre que lhe ensina a morte, e na sonata é a vida que é ensinada a um vivo, – O Estudante – por um outro personagem que eu apostava que está morto – O Velho. São duas lições, a da ilha e a da sonata. E talvez a mesma lição nas duas peças, uma aprendizagem. Só que O Mestre está na ilha e O Estudante na sonata. As duas peças são a mesma viagem, a viagem a uma Ilha, a um sepulcro. Trata-se da morte. As duas peças são o negativo ou o positivo uma da outra. Qual é qual? Faça-se uma cruz negra num cartão branco. Qual é o positivo? A cruz ou o cartão? Confunde-se a vida e a morte: a ilha dos mortos é A Ilha dos Vivos. No Teatro Intimo de Estocolmo, estavam lá os dois quadros assim chamados, um de cada lado do proscénio.
Foi sobre esta imagem dupla que inventámos a organização deste ciclo. Fechamos como abrimos. Porque a sonata é A ilha dos mortos reflectida num espelho estranho que a deforma. É aliás na imagem do quadro de Böcklin com o mesmo nome que serve de base para A ilha dos mortos que Strindberg pede que no fim da sonata se transforme o seu cenário. E é com a frase do Apocalipse com que a Ilha acolhe o Morto que o Estudante se despede da SONATA, tal como aparece na edição alemã da peça e tal como nós a representamos: “E ele enxugará todas as lágrimas dos vossos olhos e não haverá mais morte, nem pranto, grito e dor, porque as primeiras, coisas já passaram”.
Entre as duas imagens, que ficou? A morte outra vez, ou a sua imagem, ou a imagem da sua imagem, a imagem da vida: o teatro, personagens em conflito, as culpas, a inocência, a loucura, o amor. Foi páscoa, foi pai, foi outras tantas histórias de que na sonata só restam indícios na Senhora de Negro, na Porteira, na Velha, no Aristocrata, na Múmia, no Coronel. E até nos escravos, em Johansson, em Bengtsson. A sonata tem em si a ilha dos mortos e páscoa e pai. É uma viagem à vida, é a revelação dessa viagem como viagem à ilha dos mortos, a passagem do negativo ao positivo, a aprendizagem da vida como morte. E é um salto mais. É uma despedida. Despedida das “primeiras coisas”, da morte, do pranto, grito e dor, do vale de lágrimas, deste manicómio, desta prisão, desta morgue a quem chamamos mundo, como descobre o Estudante. É uma partida para a esperança. A sonata é a visita do Estudante à vida tornada morte. A vida aprendida como sonho, ao teatro aprendido como “sonho de um sonho”, tal como O Mestre dizia na Ilha.
A viagem é a mesma mas passamos agora para o outro lado do espelho, sentamos o público no palco. Estamos já dentro das consciências. Mas o lugar é o mesmo. É o espaço que criámos para a Ilha. Há objectos, há fatos, há caras (e corações) que ficaram de todo o ciclo. Também nós passamos todo o ciclo em revista no momento antes da morte (ou da vida). Construímos o espectáculo irracionalmente. Já estamos do lado da loucura, das visões puras de Eleonora da páscoa, das visões tremendas do Capitão de pai. Do lado de lá. Fizemos correspondências, relações, associações. Porquê esta e não aquela? Porque é a Múmia que veste o fato de Laura? Porque veste Hummel o casaco de Lindkvist? Porque é a mesma alma a de Deus e do Demónio? Onde se passa a peça? Na luz da páscoa? Numa catedral? Na caverna de Platão? Não sei. Como num sonho. Fragmentos. Saltos de tempos, saltos de cores (sonhamos a cores), saltos de registo.
Servimo-nos, como em a missão, de objectos nossos, pedaços de cenário, móveis, coisas do nosso passado. Tem de ser assim para ser verdade quando é a memória desordenada, o afecto, o inconsciente, que se querem pôr a trabalhar. Também, claro, porque não sabemos perceber a dupla imagem vida-morte, ou a sua passagem ao sonho, sem logo associarmos a imagem do Teatro. E qual teatro? O nosso, esta sala preta. Como havia de ser de outra maneira? Apropriamo-nos dos textos de que gostamos. Temos de os tornar nossos. Cada espectáculo tem de ser a nossa história. Ou não fossemos actores. O “esta casa está podre” do Estudante, é evidentemente também a nós que se refere. É a nós que nos matamos de cada vez que o espectáculo começa. Por amor. Para que a esperança nos não seja negada. A visita à ilha, a visita à casa na sonata, torna-se também, claro, numa visita ao Teatro. Também a aventura do Estudante começou com uma ida ao teatro. Ele foi à ópera. Foi ver a valquíria. E ele confundiu as mitologias com a sua realidade, com o seu sonho. Pensou talvez que Hümmel era Wotan, que a Filha do Coronel era Brunhilde, pensou que era Siegfried. Vimos com os seus olhos que a Leiteira/Morte limpou, os personagens que viu, estes Espectros. São gigantes, são bichos, são fantasmas? São imagens de muitas-vidas, de muita morte.
E tal como O Estudante, ou como O Morto da ilha, passamos toda a vida em revista. No Teatro estamos sempre como no momento antes de morrer. O Teatro é como o vampiro Hummel que na sonata é aliás dono da casa, narrador. Ele quis sugar o sangue do Estudante, meteu-lhe a morte dentro, fê-lo estar na vida como O Morto logo a seguir à morte, foram os olhos do Estudante que viram toda a vida do velho Hummel passar em revista, foi a morte de Hummel que O Estudante viveu como se fosse a sua. E a morte é o mal, é a mentira. E O Estudante só procura uma coisa, o bem, a verdade. A vida.
Chegamos outra vez, todas as vezes, que me perdoem, a um teatro da moral. Só há uma questão. Dela falaremos sempre. E a ela só chegamos por um lado, o lado da morte. O lado do Teatro. Que é também, claro, o lado esquerdo, o lado da vida, o do coração.
Luis Miguel Cintra