Ifigénia na Táurida
de Johann Wolfgang von Goethe
Recriação poética de Frederico Lourenço
Encenação Luis Miguel Cintra
Assistentes de encenação Manuel Romano com Rui Teigão
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos
Desenho de luz Daniel Worm D’Assumpção
Director Técnico Jorge Esteves
Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo e Abel Fernando
Montagem de luz Rui Seabra com João Paulo Araújo e Abel Fernando
Operação de luz e som Rui Seabra
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras e conservação do guarda-roupa Maria do Sameiro Vilela
Contra-regra Manuel Romano
Cartaz Cristina Reis
Secretária da Companhia Amália Barriga
Interpretação
Ifigénia Beatriz Batarda,
Toas, rei dos Tauros Luis Miguel Cintra
Orestes Paulo Moura Lopes
Pílades Vítor d’ Andrade
Arcas José Manuel Mendes
Música
Ao longo do espectáculo ouve-se integralmente a peça para violoncelo solo de Hans Werner Henze, Sérénade (1949), interpretada por Emmanuelle Bertrand
Estrutura financiada pelo Ministério da Cultura/Direcção Geral das Artes
Apoio de Antena 2
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 24/09 a 01/11/2009
34 representações
Almada: Teatro Municipal. 22 a 26/09/2010
5 representações
Conta Eckermann que Goethe lhe teria dito que na Ifigénia as palavras escritas seriam só um pálido reflexo da agitada vida que teria nascido nele durante a sua criação e que o trabalho do actor ao representá-la seria fazer-nos voltar a esse fogo que animou o poeta enquanto as escrevia. Ou seja, o trabalho do actor seria uma complexa dramaturgia: começar por decifrar a inteligência do texto e ao pôr-se em cena como personagem conseguir a reconstrução de um “fogo” que lhe deu origem. Foi esse o trabalho que tentámos fazer: recriar o fogo de um pensamento, entendendo-se que o fogo é vida ou a vida é fogo.
Agora que longamente trabalhámos, julgo ver na peça a imagem do próprio pensamento que a criava, a exposição de uma revelação, de um processo mental, de uma aprendizagem. O trajecto é o das trevas para a luz. Em Ifigénia, em Orestes, em Toas. É o da transformação da barbárie ou da velha Cultura em Civilização. É o caminho até à revelação da verdadeira natureza de Deus através da revelação de cada um a si próprio. Trajecto desejado por um mal estar, mas trajecto imprevisto, e só consentido e conseguido pelo amor à verdade que é sinónimo de respeito pela vida. É esse amor à verdade (o de Ifigénia, neste caso) que tudo move. No confronto com o que a vida nos traz, com “o acaso”, se se quiser, “coisa que não dominamos”. É esse o fogo, o desejo do confronto. O tema da peça julgo que é o próprio Conhecimento. Citando a própria Ifigénia: conhecimento de si próprio. Conhecimento do mundo. Nisso consiste a vida. Pelo menos para aquela raça de infelizes que são escolhidos pelos deuses, para os que querem criar mais vida. Para os artistas, pelo menos, com certeza. Para os que têm desejo de existir. Ou não fosse Goethe autor do Fausto.
Como se Goethe, animado dessa enorme e tranquila curiosidade pela vida e do respeito a si próprio que reconhecemos na sua biografia, ao escolher recriar o velho mito que liberta os descendentes de Tântalo, “o homem mais honrado pelos deuses”, vítima de uma enorme e aceite mas inaceitável maldição, quisesse, por amor à verdade e ao futuro, pela vontade de conhecer, de conviver em si próprio com a sua herdada Cultura, de dialogar também com os que antes dele o tentaram fazer (veja-se a quantidade de Ifigénias recentes que surgiram antes da sua), quisesse expor-se à História, a uma identificação com a Civilização que herdámos, e dessa experiência tivesse nascido a revelação de uma nova verdade, uma nova maneira de viver, uma esperança. Uma nova humanidade donde emana a transcendência da vida. E um fogo, o do próprio pensamento.
Ifigénia torna-se na própria imagem do sujeito, num duplo do autor. É ela que gera toda a transformação. E é mulher. Daí, (desse acaso?) nasce a mais nobre descoberta, a da identificação do conhecimento, da inteligência, com o próprio princípio feminino por oposição ao princípio masculino, da entrega mais do que da posse, ou da força. É ela o ser pensante e o ser sensível. Há na peça, evidentemente, a defesa histórica da mulher como ser inteligente, mas mais do que a defesa dos seus direitos, há a descoberta de uma nova maneira de estar vivo, a maneira feminina, daquela que não tem espada, e porque não tem espada vai gerar mais vida. A defesa da fragilidade. E da fragilização. E da paz.
Todos os temas nesta história se sobrepõem. Como seria de esperar se se trata de um mito. Múltiplas dicotomias se geram no discurso dos homens presentes na história: deuses/homens, guerra/paz, barbárie/civilização, verdade/mentira, coração/razão, palavra/força, bem/mal. Mas há uma dicotomia fundamental que tudo abarca e todas as outras resolve, porque a resolve a natureza: morte/vida. Como se a escolha natural da vida tudo resolvesse e todas as outras escolhas anulasse. É por Ifigénia sentir um mal estar, e ao senti-lo o conhecer, e ao conhecê-lo o poder formular, o de um absurdo (“esta vida que tem sido para mim uma segunda morte”), que esta peça começa. Ifigénia sente-se estranha num lugar de morte. O seu lugar só pode ser o da vida. Mas como julga que foram os deuses que nesse lugar de morte a deixaram, ao contrário do que a seu irmão acontece, duvidará dos deuses mais do que da vida e, por vias tão afectivas como inteligentes, e pela intervenção da própria vida, com a chegada à ilha de seu irmão, que ela poderá salvar, acabará por chegar a uma evidente “reinvenção” da vontade dos deuses. Decidindo que pode decidir não matar, não matar os estrangeiros, inventa uma nova Diana à sua imagem, e percebendo que pode negar o castigo das fúrias, pode salvar o seu irmão, ou, melhor, percebendo que a sua fidelidade à vida a tanto a obriga, começa por entender, com Pílades, que são os homens que não conhecem os deuses (esses que escrevem direito por linhas tortas), e que os deuses precisam dos homens para defenderem a vida contra a morte. Aprende a confiar na vida. Esse o primeiro estádio a que o seu impulso vital a conduz. Mas nova etapa surge no seu percurso. Ultrapassada essa dicotomia, nova questão se lhe põe. E já é só humana, levantada pela fidelidade à verdade de si própria, ao seu afecto por Toas, que é por excelência masculino, personificação por excelência da espada, do poder de matar, de uma vontade de se substituir aos deuses, já identificados como espírito de vida. E mais uma vez não duvidando da vida, descobre que é Toas quem luta contra si próprio, contra a sua natureza, e por intervenção sua, fá-lo reconhecer-se, e conhecer o seu amor como maior que a razão absurda (política?) para matar. Transforma-se ela própria em deusa (afinal ninguém entendera o oráculo porque a imagem da deusa que regressando à Grécia salvaria Orestes era Ifigénia…) e no momento em que Toas cede à vida, ao futuro, abdicando de matar e aceitando tão só a morte natural a que a velhice conduz, tratará como um deus quem viver nessa desejada terra da bondade. Faz finalmente a síntese e a dissolução de todas as oposições numa só verdade: a verdade da fidelidade à vida, fidelidade racional e irracional, tão sentida quanto pensada, tão humana como divina. Chega ao conhecimento da realidade e da sua imanente transcendência. E só uma mulher abdicaria assim da espada. Faça-se em mim a vontade da vida. Que é andrógina. Fusão dos dois princípios.
No momento em que esse conhecimento se completa, é a palavra que é invocada por oposição às armas, como instrumento de transformação. (“E o Verbo se fez carne”?). E quase só de palavras, tão trabalhadas e límpidas como musicais, parece que se faz esta peça. Segundo o próprio Goethe, a peça é pobre em vida exterior mas rica em vida interior. E é essa vida interior que o actor teria de recriar. Percebemos de facto, ao longo do trabalho dos ensaios, que muita acção havia nesta peça aparentemente estática. Acção interior, secreta. E que era na natureza dramática das próprias palavras escritas e proferidas que residia o seu segredo. Estas palavras, mesmo quando revelam o que vai na alma, não estão em cena, como noutros casos, para ser expressão do pensamento ou do sentimento de quem as produz para satisfação do espectador, entendido como “voyeur”. Nesses casos pode o actor ser apenas a voz ou o corpo que as transporta, a sua caixa de ressonância. Aqui as palavras são o resultado de uma vida interior, da vida interior de um sujeito que tem de existir em cena antes de as produzir, de um actor transformado em personagem. Essas palavras são elas próprias acção e mais acção produzem na vida interior de quem as ouve, no palco ou na plateia, vivendo também. E o “outro” ouve-as, vive, e novas palavras profere. A palavra aqui deixa de ser pleonástica, pressupõe a existência de uma acção interior não expressa, que lhes dá origem. Muito desprezou a prática teatral do fim do século XX o chamado “sub-texto” e muita confusão lançou nas salas de ensaio. Todo o teatro “fotográfico”, que imita comportamentos, anulou a necessidade da criação em cena de um “pensamento” capaz de dar origem a palavras como estas, palavras que vão mover o mundo. Chamem-lhe o que quiserem, mas tem de haver no palco uma invenção. Tremenda responsabilidade: inventar e ser em cena o pensamento de Ifigénia, de Orestes, de Pílades, ser o fogo que os anima para poder proferir palavras que são versos e que, no entanto, na sua mais que trabalhada forma, não são coisa morta, são resultado da vida interior de um poeta, inventando-se na vida interior de várias personagens. Aqui não vale fazer batota. O actor é um pensamento em cena. Essa a parte mais nobre e difícil do trabalho deste espectáculo. E com a magistral economia com que, na versão de Frederico Lourenço, a peça nos chegou, foi um texto moderno que tivemos em mão a que nenhuma distância histórica nos permitia escapar.
Muito me deu que pensar, como pessoa deste nosso novo século, a braços com uma tremenda e asfixiante massificação da sensibilidade, a “modernidade” desta maneira de encarar a transformação do mundo nas vésperas de uma revolução que mudou de facto o mundo e foi movimento de massas: a revolução francesa. São indivíduos que estão em cena. Não são as multidões. Nada aqui da “revolta” na Flandres contra a tirania de Filipe II, que era pano de fundo do Don Carlos de Schiller. A multidão de que aqui se fala, o povo da Táurida, é alienada, quer o costume antigo da matança dos estrangeiros. O que Goethe põe em cena como motor da vida é o conhecimento de si mesmo, o conhecimento individual do mundo. Não sabemos o que se terá passado na Grécia, nessa desgraçada Micenas, finalmente livre da maldição dos deuses, que era demasiado antiga e que, conhecendo-se, Orestes destruiu. Não sabemos se ele terá conseguido vencer na sua anunciada luta pela liberdade. Ou se a terá esquecido mal se visse em casa. Nem sabemos se Toas, depois de conhecer Ifigénia e a sua própria contradição, mas depois de a deixar partir, terá conseguido continuar a banir a morte da sua prática de rei e se terá tornado no monarca esclarecido que a peça talvez gostasse de deixar adivinhar. Talvez Toas não conseguisse, como Ifigénia, transformar a sua história privada em História, e no desespero da sua solidão voltasse à cega lei da força. Mas é a confiança numa Grécia diferente da Grécia arcaica que nós, que conhecemos a História, adivinhamos na viagem de regresso dos irmãos míticos, tornados carne e osso. É a beleza da escultura clássica, do teatro, a filosofia, a democracia. A cidade ideal. Adivinhamos o chamado “berço“ da Civilização Ocidental, a Atenas do século de Péricles. Sentimos um Goethe optimista. Dá que pensar.
Também dá que pensar e me toca, voltando à “natureza” da personagem de Ifigénia, perceber que quem protagoniza o ambicioso trajecto de pensamento que a peça nos faz percorrer, e nisso mais pertinente ainda a peça me parece, não é um filósofo, não é um sábio, é uma mulher virgem, ser frágil, à partida ingénuo, sem teoria, humilde, espontâneo, sem defesas nem preconceitos: pura matéria humana. Só este ser solitário, tão inteligente como sensual, exposto ao que a sua própria natureza o conduz, pode partir para o conhecimento de si mesmo e com ele para o conhecimento do mundo, até saber que existe. Só um ser assim pode perceber e dizer no fim da peça que “não é preciso reflectir para fazer o bem.” E “Não penses tanto, segue os teus sentimentos”. Fantástica confiança na natureza humana original! Não sei se a História ainda a alguém permitirá essa pureza. Ou se alguém alguma vez a teve. Mas acredito que só se soubermos que existiu um “pecado original” progredirá o mundo. Se soubermos que a natureza não conhece bem e mal. E mais comovente ainda constatar que conhecer o mundo, descobrir a expulsão do paraíso, não tornou amarga nem desesperada a heroína. Ifigénia continuou virgem, apesar de gerar vida, continua a perceber que o Homem é bom, como afinal os Deuses.
A peça é uma mais que elaborada criação, evidente artístico artifício que dá forma a um pensamento. Mas só foi trabalhando nela que a fomos percebendo e entendendo a natureza ardente da sua aparente frieza. Foi expondo-nos sem mentira e com uma irreflectida vontade de a conhecer que a fomos conhecendo. Isso também já sabemos: só se conhece vivendo, só vive quem age, só existe quem faz. É a fazer que se pensa. Mais do que qualquer outra coisa é isso que o teatro nos dá. Foi isso que a Luiza Neto Jorge, cuja poesia tem a alma de Ifigénia, reconheceu como “fogo”, esse “fogo” que Goethe nos pedia para recriar. “A fulgurância do supremo actor/ um fio de voz a repercute/no coração de quem lhe escute/anterior às réplicas o tremor.”
Luis Miguel Cintra