O Dia de Marte
de Edward Bond
Tradução Ana Maria Baptistil, António Fonseca, Marta Piedade, Raquel Cardoso e Rita Duarte
Encenação António Fonseca
Cenários e figurinos Cláudio Garrudo, Fernando Ribeiro, João Ribeiro, Tónan Quito e Rita Durão
Música Ricardo Santos, Paulo Taylor, Francisco Ferreira e Ricardo Leão
Luzes Quarto Período e Pedro Marques
Apoio na montagem Fernando Correia e Alexandre de Freitas
Apoio de adereços Alfredo Martinho e Luís Mouro
Divulgação Rita Duarte, Raquel Cardoso, Ana Rita Férrer, Helena Brandão e Marta Piedade
Produção Alexandra Rua, Francisco Ponciano, Vanessa Neves, Sara Duarte, Raquel Guerra e Cláudia Andrade
Cartaz Fernando Ribeiro
Interpretação
Irene Rita Durão, Rita Duarte e Cláudia Andrade
Brian Tónan Quito e Femando Ribeiro
Pai António Fonseca
Polícias José Álvaro Correia, David Lopes, Cláudio Garrudo, João Ribeiro, Hugo Neves e Francisco Ponciano
Oficial da Polícia João Castel Branco
Vizinha Ana Rita Férrer
Cão Armando Quito
Criança Daniel Durão
Mulher Polícia Kieza Santos Correia
Enfermeiras Sara Duarte, Raquel Guerra e Raquel Cardoso
Músicos Ricardo Santos, Ricardo Leão, Paulo Taylor e Francisco Ferreira
Colaboração de Maria Helena Serôdio, Filomena Louro, Conselho Directivo da ESCCB -Carnaxide, PSP, BV Carnaxide, SF Carnaxide, Castro Ferreira, Teresa André, Alice Durão e Carris
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 23/02/1995
22 representações
Co-produção do grupo de Teatro Quarto Período-o-do-Prazer e do Teatro da Cornucópia
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
Apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, Câmara Municipal de Oeiras, CP Caminhos de Ferro Portugueses e British Council
Tenho muitas vezes medo de que o teatro nos afaste da vida e se torne completamente vazio. Pode acontecer, de várias maneiras. Os hábitos de vida dos "profissionais" de teatro são diferentes daqueles que as outras pessoas têm, os actores têm-se a si próprios como principal instrumento de trabalho e por isso pensam demais em si próprios e menos nos outros. Os actores, quer queiram quer não, passam a vida a mostrar-se às outras pessoas que os observam, que os aplaudem, que talvez os admirem. É fácil para os que vivem assim, esquecerem-se de que são excepções dentro da sociedade, que facilmente se podem tornar em aberrações, que não é assim que toda agente vive, que o que se passa no mundo são outras coisas, que há uma violência diária que de todas as maneiras impede os homens de viver as coisas grandes e a alegria de que são capazes. Também é fácil para os actores esquecerem-se de que o seu trabalho ilude a solidão. E ainda é mais fácil quando os espectadores, mesmo que não tenham grande consciência disso, procuram tantas vezes no teatro um lugar de fuga para uma angústia que toda a gente sente mas tem medo de nomear, de reconhecer, de combater. Se não queremos que o teatro se tome numa actividade desesperada, oca, teremos de preservar a profunda ligação à vida que é a sua razão de ser. O Teatro é um lugar de encontro da sociedade consigo própria. Pelo teatro tem de passar a vida de quem lá está e também a de quem lá vai e ainda a daqueles que lá não vão. Pode ser uma ilha onde se sonham e inventam personagens, situações, jogos, cores, sentimentos, ideias, que desejamos e não conseguimos viver fora, na vida de todos os dias. É absolutamente indispensável que defendamos esses espaços onde o exercício de alguma liberdade é talvez possível, onde podemos inventar alguma vida a nosso gosto em vez de imitar as limitações que nos programaram, mas também é verdade que o teatro não pode deixar de falar da nossa época e do seu sofrimento.
Reconhecemos nas peças de Edward Bond essa capacidade. Quando representámos há uns anos a TRILOGIA DA GUERRA sentimos que pensávamos e falávamos do nosso mundo. Assim acontece também com as duas peças de Bond que agora programámos e que começamos a apresentar com o espectáculo criado pelo Quarto Período-o-do-Prazer: DIA DE MARTE (TUESDAY), TUESDAY e OLLY'S PRISON, a outra peça de Bond que a Cornucópia apresentará mais tarde durante o ano. São dois textos sobre a violência tal como todos a conhecemos e muitas vezes não a reconhecemos na nossa vida de todos os dias. São textos escritos agora, datados de 1993, um deles destinado aos adultos, outro aos adolescentes, mas que expõem ambos a prática e a violência social, justamente no ponto em que a vida e os factos por natureza se transmitem: as relações de pais e filhos, contacto entre as diferentes idades, as gerações. E que a essa violência dão um nome: o dinheiro. Mas, para além disso e a acima de tudo, DIA DE MARTE é um espectáculo diferente na sua ligação com o mundo exterior à nossa companhia, sai fora dos moldes habituais dos espectáculos apresentados pelo Teatro da Cornucópia. É um espectáculo que pelas suas próprias características de produção nos liga ao mundo lá de fora. DIA DE MARTE é um espectáculo em que a nossa sala, os meios trabalho de que dispomos, são postos à disposição de gente muito nova que, em cumplicidade com um dos actores da nossa companhia, o António Fonseca, pôs já de pé com as suas próprias energias e capacidade de organização dois espectáculos. Esse grupo não é profissional ainda nem se preocupa com isso. Trabalha, como diz o nome que se deu a si próprio, por prazer. É esse grupo que temos a honra de convidar para viver durante algum tempo connosco debaixo do mesmo tecto, para trabalhar connosco de várias formas. Alguns dos seus elementos são actores no TRIUNFO DO INVERNO. A peça de Bond interessou essas pessoas, fala de uma realidade que elas conhecem ou de que são curiosas. Veremos que espectáculo inventaram a partir dela. A prática da sua construção já vale por si. A presença desta gente dentro desta casa lembra-nos que, felizmente, o teatro, a sua prática, aquilo de que ele pode falar, não é só nem sobretudo pertença dos velhos e novos rotineiros, é, tem de ser, de toda a gente. De cada um à sua maneira, sem profissionalismo. E, está claro, muito longe da Broadway, do pátio da fama e até da televisão.
Luis Miguel Cintra
OXALÁ
Este espectáculo é fruto de vários acontecimentos que persistem na minha memória. Um deles foi a participação na GRANDE PAZ de Edward Bond que o Teatro da Cornucópia levou à cena há já alguns anos. Aí tomei contacto com o universo de Bond, um mundo aparentemente estranho e tão próximo das nossas antiguidades individuais e colectivas, dos nossos instintos que extravasam para as instituições, analisemos nós a História ou o nosso mundo contemporâneo que parece apostado em concretizar as visões apocalípticas da GRANDE PAZ.
O contacto que nos últimos anos tenho mantido com adolescentes é outro. Esse contacto tem-me ajudado a não perder a adolescência, esse tempo em que o sentimento precede a palavra, a verdade está no primeiro impulso, o erro é uma aprendizagem, o julgamento um grito, a manifestação do desacordo uma generosidade muitas vezes suicida. Como diz uma das personagens desta peça "Não sei porque o fiz. Não conheço as palavras. Ninguém mas ensinou". Este trabalho é a possibilidade de me religar com esse tempo, definitivamente passado. Sem revivalismos. Mas com algo mais sedutor: um confronto com uma sensibilidade e saberes de que me ia esquecendo. Dá-me a certeza, ao trabalhar este texto com estes meus amigos, de que alguma coisa me persegue e que só me deixando contaminar pelo que vem a seguir, porque vem a seguir, faz algum sentido continuar e acreditar em coisas que tantas vezes sou tentado a abandonar, porque é mais fácil, porque já dei, porque já não sou novo, porque outros também o fazem, sei lá! As nossas relações de adultos com os jovens (e aqui, já que se trata de alunos, haveria tanto a dizer: se calhar mais em termos de instituição escolar do que dos seus agentes) estão tão despidas de cumplicidade e somos tão incapazes de idealismo...
Basta olhar o modelo de educação que oferecemos, a maneira como no nosso ensino se lida com a criatividade dos alunos, a sua generosidade, e curiosidade, o seu gosto pela diferença...
Quando o Luis Miguel me desafiou a fazer este espectáculo fiquei com a sensação de que esta era uma peça sobre a guerra. Hoje diria antes que é sobre o assassínio autorizado da inocência, que é talvez uma maneira mais concreta de vermos a guerra, habituados que estamos a pequenas explosões de indignação por Timor-Leste e a imagens trazidas de longe e servidas à hora do jantar. Quando a guerra nos é servida como em DIA DE MARTE não há boa consciência que se acalme. Nem a nossa nem a do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Ou da Educação. Essa não sei. Mas a nossa não. Continuar a saga do Quarto Período-o-do-Prazer com este espectáculo, poder participar da festa de estar lá dentro, é para mim uma alegria enorme. Estou grato a estes meus amigos, tão crescidos desde a última vez, e ao Teatro da Cornucópia. Que DIA DE MARTE sirva para não perder a inocência, apesar de tudo. Ou pelo menos a memória da inocência.
António Fonseca