O Sonho da Razão
Uma colagem de Luis Miguel Cintra de textos de Diderot, Voltaire, Marquês de Sade e Voisenon
Tradução Luís Lima Barreto, Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes
Adaptação e Encenação Luis Miguel Cintra
Cenário e Figurinos Cristina Reis
Desenho de Luz Daniel Worm d'Assunpção
Interpretação Dinarte Branco, Leonor Salgueiro e Luis Miguel Cintra
Assistente de encenação e contra-regra Manuel Romano
Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos
Director técnico Jorge Esteves
Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo e Abel Duarte
Montagem e operação de luz e som Rui Seabra
Guarda-roupa, costureira e conservação do guarda-roupa Maria do Sameiro Vilela
Assistente de produção Tânia Trigueiros
Secretária da Companhia Amália Barriga
Cartaz Cristina Reis
Textos originais utilizados
Voltaire: A et B; Le Chapon et la Poularde
Diderot: Entretien entre Diderot et D’Alembert ; Le rêve de D’Alembert ; Suite de l’entretien entre Diderot et D’Alembert ; Entretien d’un philosophe avec la maréchale de…
Marquês de Sade: Le prêtre et le moribond ; A verdade
Voisenon: Le sultan Misapouf
Música
Georg Bohm (1661-1733): prelúdio em sol menor, suite em fa menor, abertura em ré maior,suiteem mi bemol maior (Gustav Leonhardt - Cravo e clavicórdio)
Mozart (1756-1791): Miserere K 85 (Concentus musicus Wien, Arnold Schoenberg Chor, Nikolaus Harnoncourt); Don Giovanni, 1º acto (Wiener Philarmoniker, Karl Böhm, Festival de Salzburgo 1977)
Duração do espectáculo: 150 minutos
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 28/06 a 8 de Julho e de 17 a 29 /07/2012
28 representações
Estrutura financiada por Secretário de Estado da Cultura/Direcção Geral das Artes
É um espectáculo de câmara, como se diria na música, um trio. Mas é à roda de uma personagem mais velha, um Moribundo sem nome, sábio sem profissão conhecida, mas falando a partir de um lugar que é o do conhecimento universal, que os outros dois actores fazem passar as outras figuras: uma jovem que cuida do Velho, um Padre, um Médico, e dois galináceos, isto para não falar do gato. Parece a hora da morte. Mas talvez não seja. É para o Moribundo a hora de deitar contas à vida. O padre fala de culpa e perdão, o médico de ciência, enquanto vai fazendo o que pode para abusar da rapariga que é ingénua e maltratada mas quer saber. Na segunda parte deste desconcerto, a lógica passa a ser a da desordem dos sonhos minados, como já sabemos, pelas pulsões sexuais, por definição inconscientes. Fala-se da mistura das espécies, do acto sexual, do onanismo. Há um galo capão e uma galinha capada. E uma cínica Marechala, verdadeira incarnação ou da morte ou da mentira social que, já se sabe, é a inversão da vida. Essa diz que reparte os seus dias entre fazer meninos e praticar os evangelhos. E o sujeito moribundo vai tocando o seu “cravo da sensibilidade e da memória”, tenta a conciliação das novas ciências e do saber universal com a vontade de legar à sociedade uma nova ética, ou simplesmente de se definir e inventar. E morre mesmo. A partir do famoso “Diálogo de um Padre com um Moribundo” do Marquês de Sade, que a Luiza Neto Jorge e o Manuel João Gomes já tinham apaixonada e, nesses dias, corajosamente traduzido, cozendo pedaços dos maravilhosos textos filosóficos dos iluministas franceses do século XVIII, com uma profunda admiração por gente tão generosa que quer pensar de novo a vida toda, gozando da possibilidade legal de manipular à vontade os textos clássicos, que, felizmente, já são património Universal, e assumindo a liberdade de fazer desses textos o que quisesse, fiz mais uma vez um guião de espectáculo, e desta feita como quem se põe no papel de advogado do diabo. É-me de facto necessário, agora mais do que nunca, imaginar que estou a ajudar a reconstruir uma consciência da vida que julgo indispensável para viver.
Não quis um espectáculo sobre o século das luzes, mas presto homenagem a esses “filósofos” que, “a fundo perdido” (coisa inimaginável no nosso tempo), tudo quiseram perceber e renovar, a uma generosidade de pensamento que veio a dar fruto na transformação política do chamado mundo civilizado e que volta agora a fazer tanta falta neste tempo de regresso da ignorância e da hipocrisia. E como escreveu Goya, na sua famosa gravura onde fomos roubar o nosso título, esse génio que, alguns anos depois deles já pôde também tudo repensar, substituindo a razão, cujo sonho engendra monstros, pelo desejo, que engendra liberdade. Tudo com humor.
O processo foi simples: integrar num contexto o mais banal possível, tão banal como o dos lugares comuns da comédia realista e burguesa, que, eliminados alguns pormenores anacrónicos, continua a ser o da maioria dos cidadãos ocidentais, pôr as personagens a falar o discurso mais ambicioso possível sobre o que é o ser humano, o que é a humanidade, etc e experimentar o resultado: um desconchavo. O discurso torna-se ridículo e a maneira de viver também. Sintoma de que entre as palavras tornadas em discurso, essa maneira de pensar por extenso, abstracta, que a razão criou para organizar o pensamento, e a vida, alguma coisa funciona mal. O “cravo organizado” de que fala o Moribundo para definir o ser pensante passa a ser um sonho patético de uma pacificação qualquer, que não consegue nascer do discurso, e que o Moribundo não consegue alcançar. É um desconcerto.
Parece a mesma coisa que no nosso tempo acontece. Uma insatisfação, porque os valores a que nos habituámos já não pertencem à realidade do nosso viver. Não temos outros, elaboramos discurso com o uso antigo das palavras, e só nos pacificamos, suspeito, com nova maneira de viver, e com novo conceito de discurso, uma nova maneira de falar, tornando as palavras em coisas, e os actos e as sensações e os afectos, em pensamento. Falando com a língua do catolicismo, a mesma da civilização ocidental, o homem debate-se com o pecado original.
Esta é uma história de um homem honesto e infeliz que quer compreender, e que julga que conhecer é ter “a posse da floresta”. Que, como Adão depois da árvore e da maçã, se condenou a querer conhecer, coisa que só Deus podia fazer, e que pensou que nisso consistia o paraíso. Afinal era o Inferno.
Estou a fazer filosofia, para mal dos meus pecados, e quem me dera que já não fosse preciso discursar. Já lá dizia o Bourgeois Gentilhomme de Molière: “Quoi ? quand je dis: « Nicole, apportez-moi mes pantoufles, et me donnez mon bonnet de nuit», c’est de la prose ?” E a nossa Marechala também: “Eu fiz Filosofia?”.Desculpem-me o topete. Mas oiçam: se eu ler a Bíblia, escrita afinal por artistas, obra de outros homens, nunca o esqueçamos, passo a ter todos os homens como meus irmãos, e de tal modo é genial e alheia à ciência a imagem que inventou para o princípio do mundo que, crentes ou não, todos ficamos descendentes de Adão e Eva, os do pecado original, os que comeram o fruto proibido da árvore do conhecimento, e viram que estavam nus e sofreram porque até aí só havia contemplação e ter domínio sobre o resto da natureza era alegria, era luz, e passaram a ficar condenados a pensar, a querer conhecer quem eram. Conhecer e conhecer-se. Foi a isso que o Homem se condenou quando Deus o pôs à prova. Para seu bem e para seu mal. A tarefa não tem fim e não pára de ter consequências. A liberdade é a mesma, a inicial, mas somos muitos e a responsabilidade é individual mas o tempo é mais vasto que cada um. E para mais prova da existência de Deus, desde o princípio do mundo que os homens ainda não perceberam muito mais para além de que são feios e pequenos. E que morrem. Mas que a vida é movimento e maior que cada um. E para além do tempo só Deus. É isso que não percebem. Não fosse Deus quem é, e nem o Homem existia, nem Deus o tinha deixado ser quem viria a ser: um ser à frente do espelho condenado a tentar perceber-se. Édipo diante da Esfinge. Ou, para além do tempo, e em vez de Deus, Nada. Ou a Natureza. Sempre em movimento.
O desafio de Don Giovanni à estátua do Comendador é uma resposta ao que, recorrendo à razão e dividindo o mundo em bem e mal, o homem não aceita: ser pequeno. É não querer assumir a dimensão da vida como mistério. É não querer deixar de ter “a posse da floresta” em vez de passar a ter o prazer de viver nela. É querer dominar a Natureza, é querer ser como Deus que a criou, esquecendo a morte. Queremos roubar a Deus o Verbo que o homem não pode ser, e, se levarmos a Bíblia a sério, porque o Verbo é o próprio Deus e é Mistério, não tem princípio nem fim, e não tem matéria palpável. Não tem carne.
E vamos desembocar num problema de linguagem, que é como quem diz: maneira de pensar. E lembremo-nos que essa é a mais importante diferença entre um homem e um animal: um animal não fala. Não é isto mais importante que querer vê-los parecidos uns aos outros, massificar o conhecimento, só para nos libertarmos da ideia de Deus? E se a palavra Deus existe não foram os homens que a inventaram? E não existe tanto como tudo aquilo que não vemos, não sentimos, não tocamos, aquilo a que chamamos Nada? Já digo como Santo Agostinho: “Verdade é aquilo que é”. Verdade? “What’s in a name?” Tão poeta um como o outro. A questionar com palavras as palavras, a ideia. Aceitando o acto de criar, a subjectividade, como a única maneira de conhecer. Criando mais realidade, mais responsabilidade?
Impressionante como estes textos dos iluministas, o seu comovente debate sobre a verdade do ser humano, são só uma luta desesperada, um esvair-se em sangue próprio, tanta ferida!, porque é feita sem novas armas, só com um discurso que não transforma, conserva, tudo igual ao herdado e infectado discurso da cristandade, como quem travasse, como no Hércules e a Hidra de Heiner Müller, uma luta sangrenta contra a si próprio.
Dá-me vontade de gritar-lhes: inventem outra maneira de usar as palavras e talvez passem a conhecer melhor a existência. E se falar for inventar, aí começamos a entender. Sejam poetas. Transformem a ciência em arte. Acreditem que tudo existe sem ser nomeado, que nomear é que é perceber, e perceberão como S. João pôde dizer: “no princípio era o Verbo”. E o outro João, o baptista, pôde transformar a história do mundo com uma palavra deítica apenas: “É este, este é o filho de Deus”. E mais, foi com uma imagem: “este é o cordeiro de Deus”. Deu um nome às coisas e às pessoas. É o contrário da sintaxe, que não nomeia, não cria, é autoritária, organiza a realidade.
A Bíblia não fala como a prosa nem como a filosofia. A Bíblia conhece o mundo nomeando-o, não explicando. Inventando parábolas, contando Histórias. A civilização e a igreja destruíram a sua linguagem, a sua verdade: a forma das coisas verdadeiras.
O absurdo que salta do espectáculo que fizemos quer expor como a razão engendra monstros. E que são os monstros ? Formas de nomear os erros, para lá do bem e do mal: o verdadeiro pensamento: Metáforas. Que surgem do inconsciente. Não dessa aberração que é a Virtude. A Bíblia, como descobriu Santo Agostinho, não fala a linguagem da filosofia, é poesia, inventa imagens e só assim fala verdade. “Et incarnatus est”. Segundo a Bíblia, Deus incarnou, ou seja, resgatou o homem da sua incapacidade de se conhecer, resgatou-o da morte quando lhe deu forma, quando deu a um dos homens o nome de Jesus. E o Verbo se fez carne.
A Bíblia, como poesia que é, com a sua linguagem poética, compreende mais porque reconhece a transcendência e a capacidade de pensar do Homem. Dá-lhe individualidade. Responsabilidade. Deixa-o, a cada um dos homens, interpretar. Dizer: “que importa uma forma mais que outra?”, como diz este Moribundo, é não entender que são muitos os filhos de Adão. E que é com as formas que se pode conhecer. Que conhecer não tem fim. E é assim que colaboramos com Deus. Explicar tudo até ao fim, não explica o principal: o pecado original. Que a vida é um Mistério. É recusarmo-nos a conhecer a nossa pequenez. Quando, segundo o Génesis, Deus disse ao Homem que desse um nome a cada coisa, falou do poder de conhecer falando, entendendo-se falar como reconhecer.
Para dominar essa desmedida, criamos nós imagens, sons, palavras. E compreendemos mais? Não sei, mas pensamos que sim e temos a ilusão de colaborar com Deus. Inventando-o como Mistério ou negando-o. E sobretudo temos assim a ilusão de mais nos distinguirmos das pedras, das plantas, dos animais. Ao contrário do que diz o Moribundo, há muitos indivíduos. Há os hipócritas ou os santos, que vivem afectivamente, sem ter de dominar, aceitando, conciliados e pacificados pelo resgate divino. Há os vaidosos e suicidas, que querem, como neste espectáculo se repete, e como se diz que fazem o tigre e o homem selvagem, a posse da “floresta”, nova imagem de toda a criação, desafiando Deus. E há os puros de quem se diria que não são filhos de Adão e não conhecem a arma do demónio, o espelho, mas de quem Cristo disse: “bem aventurados os pobres de espírito porque deles é o reino dos céus.” E há os artistas que inventam o seu espelho pessoal e para quem a felicidade seria perder-se em si próprio, num labirinto de imagens, verbais, visuais ou auditivas, apaixonados pela Humanidade. Esses às vezes criam mitos: dois deles evocamos com esta colagem de textos: Don Giovanni, Doutor Fausto. E há outro desconhecido, o desejo, que é sexuado, e é inconsciente, que a razão própria do homem não domina, e que engendra monstros e move montanhas e é alheio à moral e à teologia e que muitas vezes se confunde com o coração.
Estou a filosofar. Escrevo tudo isto para, brincando, vos explicar como vivo, a brincar com o fogo. Consolando-me da morte. Fascinado por tudo o que não é racional. Pela parte que me cabe, é-me já quase impossível não tomar todo o teatro, e toda a arte, como um processo de conhecimento, conhecimento do ser humano. Um espelho. O melhor de todos os espelhos porque, por mais que queira apresentar conclusões, sempre se torna no que é: humanidade. Carne. Como já tantas vezes o disse: mais do que discurso, metáfora. Jogo.
Mas não sei se este espectáculo o consegue ser. O texto estava apostado em falar da razão. Hoje não é para mim com a razão que se conhece. Mais pela relação com os outros. E minei o valor do que nele se afirma introduzindo-o em situações de pseudo-quotidiano. Este espectáculo é para mim, um pouco diferente, é um exercício condicionado pelas actuais dificuldades financeiras (“à quelque chose malheur est bon”) mas acabou por se transformar num pequeno auto sacramental para figuras com maíscula: O Moribundo: o Homem; o Padre: a Religião, o Médico: a Ciência; Mlle de L’Espinasse: a mulher ou Lilith, o nome da mulher de Job, etc. Um pouco como O meu caso de Manoel de Oliveira, de facto, a partir de José Régio. Aliás, o Padre e o Médico ficaram por muito mais tempo nestas funções como lugar comum do teatro burguês na sua função de símbolos dos opostos no método de conhecimento: ciência e religião. E outro dos lugares comuns do teatro burguês fomos buscar para pôr em causa o valor da filosofia: os clichés da comédia burguesa, as situações do boulevard. Mas se o texto que estas personagens dizem é um discurso ideológico, aliás todo desrespeitado por mim, misturando autorias, e arriscando-me a torná-lo irreconhecível, a sua inserção em situações de comédia desvaloriza-o como texto doutrinal. Ganha a presença dos corpos. E a peça que daí resulta deixa de ser alegoria. Passam a ser retratos de indivíduos comuns que, no entanto, tudo pretendem explicar pela razão, para justificar uma natureza afinal em contradição com a sua própria vida.
O que apaixona nestes textos é um amor pela humanidade, considerada como boa, e pela vida, que conduz a tudo tentar ver de outra maneira, pela razão em vez da fé, comparando o homem com o animal em vez de o comparar com Deus. Convenhamos que é pouco. É batota. E que a razão cai por terra quando aquilo que se passa a ver são sonhos, desejos reprimidos, inconsciente, ou seja, claro sinal de uma natureza que é extraordinária porque é rebelde a qualquer lei racional, e é um prodígio como eles queriam afirmar sem perceberem que não é com a razão que ele pode ser explicado. Nada mais comovente na sua ingenuidade que o esforço de observação objectiva que está na origem dos desenhos que ilustram a Enciclopédia de Diderot e de D’Alembert. E que reduzem a realidade. Não explicam nada. É a sua ingenuidade, a paixão pelo ser humano que denotam aquilo o que nelas fez avançar o mundo. A contradição. Justamente tudo o que nesta gente foi menos racional. E menos cientifico. Que a razão engendra monstros. E há-de ser pelo coração que lá havemos de chegar. Quanto menos sensatos mais humanos. E mais verdadeiros.
Sejamos todos artistas. Reinventemos o mundo. Contemos histórias, inventemos formas. Não é ridículo dizer que um grão de mostarda se parece com o reino dos Céus. É com imagens, e com formas, que damos a liberdade a cada um de entender. Sejamos “pobres de espírito”. Reconheçamos que o que é ridículo é desvalorizar a revelação que as palavras do Sermão da Montanha nos concedem. E matar qualquer volúpia com a descrição dos órgãos sexuais femininos.
E assim sendo, festejemos. Inventando puras verdades. No teatro, com “tutti quanti masquerette” formos capazes de inventar.
“Venite pur avanti, vezzose mascherette
É aperto a tutti quanti
Viva la libertá
Siam grati a tanti segni di generositá"
Citando a obra mais genial daqueles anos. Isto é que é falar: cantando. E a virtude é que não faz cá falta nenhuma. Basta ter bom coração. E conhecer, para poder “esquecer todos os erros imbecis da hipocrisia.” Nisso somos perfeitamente solidários com os autores daquele tempo.
Mas por enquanto O SONHO DA RAZÃO é uma descida ao Inferno, o Inferno da nossa Civilização. E nem o “Somewhere over the rainbow, way above, ther’s a land that i heard of once in a lullaby” da Judy Garland nos levará, aqui em baixo, à terra da alegria.
Luis Miguel Cintra