Um Auto de Gil Vicente
de Almeida Garrett
Encenação e dramaturgia Luis Miguel Cintra
Assistente de encenação Luís Assis
Apoio dramatúrgico José Manuel Mendes e Luís Lima Barreto
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistentes de cenografia Linda Gomes Teixeira e Luís Mouro
Direcção musical Manuel Morais
Acompanhamento vocálico dos actores Luís Madureira
Montagem Fernando Correia
Assistente de montagem Alexandre Freitas
Ajudante de montagem José Santos
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Aline Sêco, Antónia Costa, Delfina Fonseca, Delfina Silva, Maria Piedade Duarte e Teresa Cavaca
Confecção de cortinas Decorguta
Desenho de luzes Daniel Worm d'Assumpção
Luminotécnico Pedro Marques
Contra-regra Alfredo Martinho
Gravação de som Francisco Leal
Secretaria da companhia Amália Barriga
Relações públicas Vanda Leitão
Interpretação (por ordem de entrada em cena)
Pero Safio Rogério Vieira
Paula Vicente Margarida Marinho
Bernardim Ribeiro José Airosa
Chatel Luís Lucas
Gil Vicente Luís Lima Barreto ou Luis Miguel Cintra
Infanta Dona Beatriz Beatriz Batarda
El-Rei Dom Manuel José Manuel Mendes
Barão Saint-Germain Marcantónio DeI Carlo
Conde de ViIa-Nova António Fonseca
Bispo de Targa Alfredo Martinho
Falcoeiros Miguel Borges, Nicolau dos Mares, Renato Aires e Tónan Quito
Actor (Sol) Luís Assis
Actriz (Lua) Rita Durão
Pagem João Murima
Joana do Taco Márcia Breia
Cantora (Vénus) Sandra Medeiros
Actor (Vento Sul) João Murima
Actor (Vento Nordeste) Renato Aires
Actor (Vento Norte) Nicolau dos Mares
Actor(Vento Noroeste) Tónan Quito
Actor(Mar) Miguel Borges
Marinheiro Miguel Borges
Inês de MeIo Márcia Breia
Séquito do Rei (3° acto) Nicolau dos Mares, Renato Aires e Tónan Quito
Entreactos Luís Assis, João Murima, Márcia Breia, Miguel Borges, Nicolau dos Mares, Renato Aires e Tónan Quito
Músicos Paulo Galvão (Ataúde) e César Viana (Flauta)
A dramaturgia do espectáculo suprimiu as personagens de Garcia de Resende, Dr. Jofre Passerio e o Mordomo-Mor de El-Rei. Integrou na peça de Garrett mais texto das Côrtes de Júpiter, de Gil Vicente do que o previsto pelo auto, vários trechos da "Menina e Moça" de Bernardim Ribeiro e uma estrofe do Romance de Garrett "A Aia" (a propósito da Infanta Dona Beatriz)
Música No espectáculo são tocadas e cantadas ao vivo as seguintes composições musicais: Si Tantos Monteros, Anónimo, Cancioneiro Musical de Palácio; Nina era la Ifanta, Anónimo, Cancioneiro Musical da Biblioteca Nacional de Lisboa; Nunca fué pena mayor, Juan Urreda, Cancioneiro Musical de Palácio; Ninã erguedme los ojos, Francisco de Peñalosa, Cancioneiro Musical de Palácio; Por el rio me llevad, amigo, Contrafactura de Partir, corazón, partir de Juan deI Encina.
Música gravada Miguel Ivo Cruz violoncelo, Pedro Florêncio, João Condesso trompetes Catarina Latino percussão
Colaboração de Drª. Madalena Braz Teixeira (Museu do Traje), Fundação de S. Carlos e alunos de Cenografia da Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo
Porto: Teatro Nacional de S. João. Estreia: 22/03/1996
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 18/04/1996
51 representações
Co-produção do Teatro da Cornucópia com o Teatro Nacional de S João
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
Apoio de CP-Caminhos de Ferro Portugueses, TSP, Rádio XFM, Inapa e Nova Rádio
Sejamos desequilibrados, imperfeitos apaixonadamente impuros. Sejamos portugueses. É isso que nos parece dizer esta peça impura, que muitos acharão imperfeita, desequilibrada. Mas que é apaixonadamente portuguesa. Como também isso nos diz, e talvez não seja por acaso, todo o benditamente impuro génio dramático de Gil Vicente e muito em especial essas CORTES DE JÚPITER, que serão teatro ofícial até mais não poder ser, mas que o pobre Vicente imaginado por Garrett apaixonadamente tenta ensaiar, contra tudo e contra todos, no meio de negócios de Estado e embaixadas estrangeiras, de mistura com paixões e desgostos de amor de poetas, princesas e actrizes, preso no seu próprio entusiasmo. As CORTES já são acima de tudo uma peça portuguesa e talvez sobre Portugal: são o roteiro de uma despedida. A despedida de uma menina. Uma princesa portuguesa parte para longe, para "o estrangeiro", deixa a sua terra, leva e deixa saudades. A festa da sua despedida é uma sumptuosa oposição de Portugal ao resto do Mundo. Uma afirmação de nacionalidade, um esconjuro do medo de partir, ao que parece e por sinal, destino português por excelência. As CORTES são, como toda a obra de Gil Vicente, profundamente portuguesas até na ironia com que cumprem a sua função oficial de anunciar o desfile náutico que no dia seguinte iria rivalizar com os"trionfi" dos italianos. São irónicas, inteligentes, impuras, misturando o tom nobre de um ou outro verso de ]úpiter, da Providência ou de Marte, figuras de cartão de inspiração ilustre (e de menos consequência que o épico concílio dos deuses de Camões) com as palhaçadas dos ventos, o romance Niña era Ia Ifanta, que apaixonou Garrett, e essa fabulosa e longa antevisão do cortejo, maravilhosamente fechada em jogos de cumplicidades internas à côrte, em graças, elogios e galanteios que quase já nos são incompreensíveis de tão profundamente efémeros mas a que Vicente confere a densidade poética de uma apoteose onírica. Tudo isto sem esquecer que Portugueses também são mistura. Sempre andaram berberes por aqui. Valha-nos isso! E lá vem a moura encantada do Algarbe, filha de Braxa e neta de Axa. Tudo com castelhano à mistura. E muitos axes e exes. Pois então? Tudo num punhado de versos.
Foi desta portuguesa "confusão" que Garrett gostou. Este teatro é que é o passado que apaixonadamente invoca quando se lhe mete na cabeça criar um novo repertório e construir o futuro do nosso teatro. (E seria isso um projecto português? Não lhe bastava, à portuguesa, escrever mais uma ou outra peça imperfeita e escrever um dia uma talvez obra-prima - o tal FREI LUÍS DE SOUSA? Quem acredita ainda em fazer escola para lá de deixar formoso exemplo?). Ficou depois o Dona Maria, ficou o Conservatório. Mas neste UM AUTO DE GIL VICENTE o que ainda hoje nos entusiasma é sobretudo o amor pela confusão, a paixão de um projecto. A própria ideia de cruzar as duas intrigas (a dos ensaios e representação do auto com a dos amores de Beatriz, Paula e Bernardim) é também a de um entusiasmo: como se o teatro se vivesse entre um suicídio por e o destino da nação, como se o teatro fosse tudo e nada ao mesmo tempo, como se fosse aquele único sítio em que toda a vida tem lugar, tanto as nossas paixões como os interesses do Estado. Parece-me que foi assim que Garrett pensou na sua peça. Pensou num palco onde houvesse espaço para tudo. E onde mais que tudo tivesse lugar a sua terra, os seus poetas, as suas mulheres, os seus actores, bispos, falcoeiros, pagens, reis, ministros e plebeus. Sofrendo todos com certeza de um mal comum, essa inimitável "saudade" que mais não é que uma especial e muito doce maneira de viver a paixão. E talvez sempre às voltas com a questão da liberdade. ("Eu constrangi sua vontade. Meu Deus, se eu matei a minha filha!", diz a culpa do rei no fim da peça). Este projecto de teatro não nos ficava mal adoptar.
UM AUTO DE GIL VIGENTE é também um pouco as "Viagens na Minha Terra" do teatro. Uma viagem pelo meu país sem ir mais longe que de Lisboa a Santarém. Também nesta peça pouco se passa mas de tudo se fala. Lá está, na abertura, em compère deste novo teatro português, uma versão do mesmo Sancho de que falam as "Viagens", a grotesca figura de Pero Safio, confidente efactotum de uma outra versão de D. Quixote, o sublime Bernardim. De Paula a Georgina não vai tão grande distância e menos ainda de Beatriz a ]oaninha. A "desordem" também é a mesma das "Viagens". E por entre esses amores vai passando todo Portugal, país de gente do mar, vai passando toda a cultura portuguesa, a poesia, a culta e a tradicional, o teatro, a arquitectura antiga, os descobrimentos, a política das artes, a sinceridade e a hipocrisia, os barões e os frades. De tudo se fala sem qualquer muito evidente unidade, num moderno e ousado desprezo pelas regras clássicas e um gosto de facto novo pela mistura dos estilos, pela convivência e debate dos registos dramáticos mais opostos e que vão do monólogo trágico à farsa, passando pelo melodrama ou pela alta comédia. Isto, a partir de uma intriga quase inexistente, apenas de uma situação de impasse amoroso (um poeta ama uma princesa destinada a outro amor oficial e é amado por outra mulher que não ama ou julga não amar). E nem o desfecho, alguma solução para o impasse, parece interessar Garrett. A sua nota ao suicídio de Bernardim, que se diria aliás um trecho das "Viagens", é isso que nos conta na sua ironia: Aqui atirei com ele ao mar por me era preciso. Creio que acima de tudo interessava a Garrett pôr Portugal em cena, sem qualquer intenção normativa, apenas por gosto de contemplar ou dar a ver. O quê? A nossa terra, as coisas portuguesas, a nossa generosidade. É alguma coisa. Mas este UM AUTO são apenas três actos gratuitos, leves. É um mero prazer cultural, é quase um exercício. E se não é verdade, foi assim que gostámos dele. São três actos que permitem três tipos de escrita dramática e três modos diferentes de mostrar a mesma gente em três locais de acção emblemáticos. E a esses três "quadros" vivos se vão colando todas as referências culturais possíveis sem medo de perder a medida, de passagem. É, de certo modo, uma estrutura aberta, livre. E a encenação assim a quis expor e sublinhar-lhe as dissonâncias.
Também por aí gostámos da peça. Por ser portuguesa assim. E sentimos que essa liberdade de escrita nos pedia que a manipulássemos, que não tivéssemos medo de a ela agarrar mais pedaços da "Menina e Moça" de que apaixonadamente gostamos, que à evocação de Gil Vicente acrescentássemos mais texto das CORTÊS e acrescentássemos até uma ou outra referência a um "jeito" já nosso de pegar nos seus autos. Pedia que não a tomássemos a sério demais. Achámos que podíamos e devíamos, sei pelo menos que me apeteceu, encontrar lugar em cena também para um Portugal que Garrett já não conheceu e que é hoje a nossa terra. A uma coisa sei que a peça de Garrett felizmente nos obriga: memória. O seu teatro defende a Liberdade e afirma uma necessidade de História. Para formar um novo repertório recorre à História, põe em cena Gil Vicente; para falar à sua época traz para cena D. Manuel e o Renascimento em Portugal, de forma mais ou menos fiel, não é isso que importa. E para nós, portugueses já do fim do século seguinte, a peça de Garrett pedia neste seu amor à História, novo trabalho da memória, um salto para o nosso tempo. Percebemos que pôr em cena a peça de Garrett era rever a nossa bandeira, tanto mais que estreamos a peça em co-produção com um Teatro Nacional. Fizémos um espectáculo que é um jogo livre com as suas cores vermelho e verde com esfera armiIar dourada como o sol e quinas azuis como o luar, a abrir e fechar cortinas de teatro. Depois de Garrett as representações da memória portuguesa foram outras. Não ficámos sobretudo com a alma apaixonada dos poetas nem com tantos exemplos como isso de tolerância e liberdade na condução dos destinos nacionais. A nossa memória portuguesa está cheia de fatos típicos de fadistas, campinos, minhotas e pescadores da Nazaré. Limpemos as cores da bandeira. O nosso espectáculo gostava de esvaziar a nossa bandeira da normalização das fardas, sejam elas de soldados, futebolistas ou executivos. Reivindicamos a generosidade portuguesa. Uma certa desordem. Por trás da nossa bandeira está a delicadeza da alma das nossas Beatrizes, a violência da paixão das nossas Paulas, o corpo de Bernardim. Quero acreditar no seu suicídio. Acabemos com os barões. Voltemos a ser marinheiros. Lugar para o coração dos nossos rapazes!
Luis Miguel Cintra