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Historial

99a - Leôncio e Lena

Ficha Técnica

 

Leôncio e Lena
de Georg Buchner

 

(acolhimento de espectáculo de produção externa com a colaboração do Teatro da Cornucópia)

 

Tradução Renato Correia

Encenação Ricardo Aibéo

Assistentes de encenação David Almeida e Sofia Marques

Cenário Joana Villaverde

Construção e montagem de cenário Jorge Esteves, João Paulo Araújo e Abel Fernando

Desenho de luz José Álvaro Correia

Colaboração nas canções e sonoplastia Vasco Pimentel e Micael Espinha

Operação de luz e som Rui Seabra

Direcção técnica Jorge Esteves

Zeladora do guarda-roupa Maria do Sameiro Vilela

Contra-regra Manuel Romano

Cartaz Joana Villaverde

Fotógrafo de Cena Clément Darrasse

Produção executiva Patrícia André

Assistente de produção Heloisa Bonfanti

Interpretação

David Almeida, David Pereira Bastos, Luis Miguel Cintra, Ricardo Aibéo, Sara Carinhas, Sofia Marques e Tiago Mateus

 

Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 13/06 a 06/07/2008

21 representações

 

Produção Sul-Associação Cultural e Artística com a colaboração do Teatro da Cornucópia

Projecto financiado pelo Ministério da Cultura/Direcção-Geral das Artes, Fundação Calouste Gulbenkian, GDA-Direitos dos Artistas e Fundação Marion Ehrhardt

 

Apoio de Academia Militar, Bustrope-Produção de Audiovisuais Lda, Câmara Municipal de Lisboa, Grupo Leal & Soares S.A., Instituto Superior de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa, Luso Relva-Produção de Relva em Tapete Lda, Rádio EuropaLisboa, RTP2 e Turismo de Lisboa

Este Espectáculo

 

O nosso Leôncio e Lena

 

“Começa tudo como uma velha história: Era uma vez…”. E lá muito longe, onde moram os príncipes e as princesas das histórias que encantam até hoje a nossa infância, eis que no pequeno reino de Pupu vivia o príncipe Leôncio muito entediado, o infeliz. A real vontade do governo de seu pai decidira que ele se haveria de casar com uma tal de princesa Lena, lá do pequeno reino de Pipi. Os príncipes, cada um por si, não querem, só por obediência à ordem, casar-se com um desconhecido. Procuram a liberdade e o Amor. Cada um deles finta a Lei suprema e os dois fogem em direcção a Itália, diz-se. Encontram-se pelo caminho, algures lá para o meio do mundo verdadeiro, que afinal é “um edifício de uma vastidão descomunal” mas tão apertado que mal se ousa “estender as mãos com medo de ver as belas imagens feitas em estilhas pelo chão”. Sem terem conhecimento da identidade do outro, teimam em apaixonar-se. Com “o livre arbítrio todo aberto à frente” são livres para decidir a sua vida: decidem casar-se. Assumem o papel de fantoches e, numa mascarada teatral, celebram a união pelos laços eternos do matrimónio. E tudo termina exactamente como era previsto.

Assim Büchner conta esta história, já mil vezes contada, às criancinhas. Mas a verdadeira história não está neste conto. A sua voz não é suave e doce, não pretende adormecer. Com esta comédia (assim é designada), Büchner desafia-nos a sonhar, sim, mas a acordar dos sonhos e a abrir bem os olhos diante deles. Responsabiliza as criancinhas pelo sono e incita-as a desconfiarem sempre desse conforto que há até no mais delirante pesadelo. O “conto de fadas” corrompe a sua própria condição. O génio artístico abjura a arte, enquanto artifício de ficção. A comédia vomita a comédia. A dor do mundo ri de si própria. A poesia afoga-se na sua ridícula inutilidade. O idealismo extingue-se na dedicada aritmética que o equaciona com a realidade.

Esta comédia tal como Leôncio também ela traz “a Primavera nas faces e o Inverno no coração”. Na efervescente dança dos trocadilhos espirituosos e na sua delicada graça, amarga é a raiz desta peça. Büchner conduz as suas personagens nesta dança elegante sobre o abismo de um mundo que vai sendo descascado como uma cebola, “como caixinhas metidas umas dentro das outras: dentro das caixas maiores há outras caixas e dentro da mais pequena de todas não há nada”.Büchner apresenta-nos um mundo esvaziado, pequenino e indefeso como uma criança adormecida.

Leôncio e Lena rasgaram os laços com o sistema que os oprimia em busca da liberdade, mas a livre vontade acabou por só servir para que livremente escolhessem o que a ordem do destino lhes tramara. A identidade corajosamente conquistada dissolve-se na sua própria máscara – que acaba por revelar o avesso do que pretende esconder. É, afinal, na máscara que Büchner nos mostra a verdadeira cara. O homem é um fantoche. Um fantoche do destino? Um fantoche do Poder? Um fantoche de Deus? Um fantoche de si próprio? “Somos títeres manuseados pelos fios de poderes desconhecidos”, como diz Danton, mas antes de tudo, as nossas personagens são fantoches da única lei ‘divina’ aqui presente – a vontade do próprio autor – que assim se subverte e assume o carácter de imitação da sua forma.

Leôncio, romântico, espiritual, é uma anedota de si próprio. Já não vive só no desespero de viver. Vive no desespero de saber que assim vive ridiculamente. Zomba da sua própria existência, pois já nem leva a sério a sua dor. O Eu fecha-se sobre si, já nada encontra que o leve a desatar este nó e a agir. Nesta espécie de acrobacia interior, Leôncio afoga-se no narcisismo da reflexão sobre si mesmo e subtrai-se a toda a relação com o mundo real. Ele não vive, esgota-se na ideia de viver. Já não ama, apaixona-se pela ideia do amar. Já não sofre sequer, desespera-se na ideia do sofrer. Nenhum valor resiste a Leôncio – até o Diabo já só existe “por via do contraste, para que compreendamos que há de facto Céu”.

Lena, tão longe do dilema “ser ou não ser” como da alma de Leôncio, não existe sequer. É uma personagem arrancada a um conto romântico e privada de todo o artifício narrativo-literário do desenho psicológico, é atirada para o meio de uma ficção que dela se serve para dizer coisas ‘bonitas’. Coisas que não servem para nada. Ninguém conhece esta Lena. O próprio Leôncio que a utiliza para descobrir o amor, não a conhece. Por isso nem sequer a ama. Não é por ela que se apaixona, mas sim pela voz das palavras que ela diz – ridículas e práticas até ao limite do banal – a palavra encontra exílio na poesia para que esta demonstrar docemente a sua inutilidade.

Só Valério resiste à canção literária. Ele é o único que sabe que a acção do homem é vã, a arte do poeta ingénua brincadeira, a reflexão do filósofo exercício de escola. Já não tem qualquer fé na Sociedade dos homens. Só ele conhece a única possível felicidade – viver mal hoje, mas fazê-lo com teimosa alegria - niilismo absoluto, terrorismo do espírito. Só Valério poderia dizer, como o próprio Büchner numa das suas revelações epistolares: “É verdade, muitas vezes me rio, mas não do modo que alguém possa ter de ser um homem – rio-me simplesmente de esse alguém ser um homem, coisa contra a qual ele nada pode fazer e com isto estou a rir-me de mim próprio, que comungo do mesmo destino. As pessoas chamam a isto troçar, não suportam que as ponham a ridículo ou que as tratem por tu. São elas que desprezam, que troçam e fazem de arrogantes porque só procuram a estupidez fora de si próprias. É claro que ainda tenho outra maneira de troçar mas não é o desprezo – é, sim, o ódio. O ódio é tão lícito como o amor”…

E depois há o Poder, aqui representado pela grotesca figura do Rei Pedro, que vive tão obcecado com o dever de pensar nos conceitos filosóficos todos postos na mais desordenada confusão que tem de dar um nó no lenço para se lembrar do seu povo.

Não existe a versão “original” da peça. Do manuscrito de um suposto esboço da peça, apenas duas ou três páginas sobreviveram a um incêndio que o destino organizou. Entre os pedaços de cenas existentes nessas páginas queimadas, está a cena dos polícias. A decisão de inclui-la ou não é livre. Resolvemos inclui-la, tal como aparece situada na tradução de Renato Correia. E resolvemos ‘repeti-la’ no início do espectáculo, em jeito de preludio, conferindo aos dois polícias que procuram “o tipo” uma espécie de omnipresença no espectáculo. Eles são como arrumadores de cena, exteriores à ficção, são convocados para dentro dela e nomeados de preceptores, de mestre-escolas, de capelões, de conselheiros provinciais, de ministros, de presidentes, de Conselho de Estado, mas têm uma farda de polícia e querem saber “onde está o tipo”. Funcionam paralelamente como figuras de uma autoridade repressiva e como veículos de um pensamento bem mais profundo e que tinge toda a peça – “o tipo” que eles procuram é a individualidade dos homens, que Büchner reclama e que o seu teatro não consegue encontrar. Certo é que esta busca é apresentada como uma empresa absurda. Pois é…

Atrevi-me a oferecer ao Leôncio, e a mim, um sonho – uma cena feita de fragmentos extorquidos ao Hamlet de Shakespeare e livremente organizados numa lógica própria de acordo com a ideia deste espectáculo. Fi-lo porque, por vários motivos - uns que saltam à vista, outros menos - tinha de o fazer. 

Muito aquém da medida justa, tenho de fazer um agradecimento muito mais que especial à Cristina e ao Luis Miguel pela generosidade desmesurada. E também à Linda, à Emília, à Amália, ao Jorge, ao Manuel e a todos os colaboradores do Teatro da Cornucópia.

Ricardo Aibéo

Imagens

fotografias de Clément Darrasse ©





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