Primavera Negra
Textos de Raul Brandão. Colagem de Eduarda Dionísio
Encenação Luis Miguel Cintra
Assistente de encenação António Fonseca
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistente para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira
Montagem Fernando Correia
Ajudante de montagem João Alves
Iluminação Ricardo Madeira e Luis Miguel Cintra
Operação de luz e som Ricardo Madeira
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Arline Seco, Ofélia Lima, Piedade Duarte e Teresa Cavaca
Manutenção do guarda-roupa Alice Madeira
Contra-regra Alfredo Martinho
Música original Paula e Miguel Azguime (Miso Ensemble)
Cartaz Cristina Reis
Interpretação
Anacleto Gilberto Gonçalves
Gebo Rui Pedro
Mulher do Gebo Laura Soveral
Pilha do Gebo/Prostituta 4 Luísa Cruz
Filósofo Luis Miguel Cintra
Revolucionário António Fonseca
Proprietário José Manuel Mendes
Velha 1 (Enforcada) Carmen Santos
Padre Luís Lima Barreto
Candidinha Glicínia Quartin
Ladrão Diogo Dória
Prostituta 1 Laurinda Ferreira
Prostituta 2 Teresa Roby
Prostituta 3 (a Mouca)/a Desgraça/a Dor Manuela de Freitas
Presidente do Conselho de Estado/Filho da Enforcada Rogério Vieira
Filho da Candidinha Luís Lucas
Velha 2 Antónia Terrinha
Velha 3 Márcia Breia
Estropiado de Guerra José Airosa
Joana Laura Soveral
Pita José Manuel Mendes
Avejão Diogo Dória
Moribunda Isabel Muñoz Cardoso
Nota: Rui Pedro foi substituido por Marques Arede
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 17/02/1993
54 representações
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
Apoio da Fundação Calouste Gulbenkian para o trabalho dramatúrgico
Apoio de Isabel Machado, Expresso, Jornal de Letras, Público, RTC, RDP Antena 1 e Agência Salgado
Este espectáculo não é um espectáculo como os outros. É um espectáculo especial, especialmente arriscado, especialmente querido, especialmente indefeso, especialmente exposto, especialmente nosso.
O que tantas vezes fazemos, quase sempre, é apaixonarmo-nos por um texto, uma peça de teatro, uma visão da vida. A encenação desse texto é uma grande vontade de o ler em conjunto com o público, de a tal ponto o compreender que ele terá de nos passar pela pele, pelas nossas emoções quando o representamos, pelo nosso corpo e alma. E o nosso trabalho é quase sempre o de um diálogo como seu autor. A encenação é quase sempre uma tradução, ou seja, a apropriação do universo de um outro, a integração no nosso discurso das palavras que entendemos noutro.
Não foi assim com este espectáculo. Mesmo na ideia inicial, que era a da construção de um espectáculo com personagens das várias peças do teatro de Brandão, o que queríamos era falar de um assunto, queriamos ser nós a falar desta vez. Passado o meio da vida, queríamos fazer um balanço, queríamos fazer um espectáculo sobre "os falhados", os que não souberam viver, queríamos pensar sobre o que é ou não viver, queriamos falar sobre a vida. E Brandão não era um autor que queríamos ler, era sim um autor que tínhamos lido e que fazia parte de nós, as suas personagens e as suas palavras eram já coisa nossa. E aí começava o nosso balanço que como sempre logo se confundia com um programa: somos daqueles que acreditam que há quadros, há livros, há música, há até peças de teatro que fazem parte da vida e passam a fazer parte de nós. Os textos de Raul Brandão eram desses. Desta vez queríamos ser nós a falar e era com as palavras dele que o queríamos fazer. Não somos, aliás, os primeiros. Com as palavras do "Húmus" também já o Herberto Helder, por exemplo, escreveu o seu "HUMUS".
E este nós que tanta vez teimei em usar sem ousar dizer eu, ganha desta vez razão de ser quando é realmente um grupo, um colectivo (ainda existem!) que criou este espectáculo. Na elaboração do seu roteiro, na escolha das personagens e na colagem dos textos, na construção do espaço em que o espectáculo tomou forma, no trabalho do grupo de actores que se conseguiu juntar para o inventar (sim, estes intérpretes são inventores!), na criação da luz, da música, no entusiasmo com que foi produzido.
Juntaram-se aqui muitas bocas dispersas, para parafrasear o discurso daquele Filósofo que anda pelo espectáculo a ver se aprende a viver e que acreditava, coitado!, na força do seu poder de síntese.
À minha proposta inicial a Eduarda respondeu com tal vontade de falar que transformou a primeira hipótese de uma galeria de personagens de teatro na proposta de um grande espectáculo em que as personagens passavam a ser as do HÚMUS, da FARSA, dos POBRES, dos livros todos do Brandão, em que era a multidão que se queria pôr em cena, a Humanidade. Não chegámos nunca a fazer o MISTÉRIO BUFFO de Maiakovski nem a PRIMAVERA DE 71 de Adamov que foram os textos mais míticos e os que mais quisemos fazer quando acreditámos que estávamos a viver uma revolução, mas continuamos a pensar que a História é das multidões e que as multidões não são figurantes, são milhares, milhões de protagonistas que até se podem chamar Anacleto, Pita, Luísa, Candidinha. Esta nossa PRIMAVERA agora é negra, está claro, feita em tempos mais obscuros, mas representa ainda o mundo e quer ter em cena todos os homens. E quer uma revolução que, como diz a Eduarda, continua por fazer.
Mas como representar a humanidade à nossa maneira? Como representa quem tem opinião mas não tem doutrina? Como representa quem vê mas não quer deixar de também ser visto?
Herdámos, passou a fazer parte de nós, uma visão do mundo, temos um ponto de vista donde se vê sempre o mundo dividido em ricos e pobres, donde se vê o homem deformando-se a si próprio, destruindo a sua vida, destruindo a vida dos outros. Como se fala disto sem nos impormos a outras visões, sem tirarmos aos outros o direito de discordar? Como se fala quando o que queremos é não obrigar os outros a ouvir-nos mas pôr os outros a pensar e a falar também?
Foram estas dúvidas que este espectáculo nos voltou a pôr. Também nestas questões este espectáculo é um balanço. É nestas questões, que são formais e que são éticas (e entenda quem puder), que temos gastado a vida a pensar e repensar a arte como maneira de nos relacionarmos com os outros. E é nestas questões que queremos continuar a pensar e não nas infâmias, nas ninharias e nas obscenidades para que a "profissionalização" e não tarda nada a "privatização" da nossa actividade teatral de colaboração com a massificação das mentalidades nos está a atirar.
E como por enquanto ainda conseguimos que não sejam as leis do mercado a controlar o nosso trabalho, divertimo-nos a inventar este palco que é uma representação do mundo à nossa maneira: como um problema.
Ninguém aqui conta a história da humanidade como uma simples história. Pusemos várias hipóteses que são sete quadros em que damos a hipótese a várias pessoas, a várias personagens, de cruzarem as suas histórias umas com as outras. Pusemos em conflito vários discursos sobre a vida ou personagens que os transportam: o Filósofo, o Revolucionário, o Ladrão; e a Mouca não quis ficar para trás já que a Candidinha também por lá apregoava o ódio. Apresentamos pessoas divididas ou se quiserem (e é aqui que entra a visão grotesca que mais não é do que a visão apaixonada da vida) pessoas dilaceradas, pessoas que sofrem. Apresentamos a vida de todos os lados possíveis, de muitos lados de dentro. Não quisemos instalar o público todo de frente para o palco. Quisemos que houvesse muitos pontos de vista possíveis. O espectador que está noutra bancada não vê da mesma maneira. Quisemos que o nosso palco representasse o mundo mas não fosse um globo terrestre em que os homens se não vêem já. É um corte na humanidade, ou um possível modelo para estudar a crosta terrestre povoada com dificuldade em solos difíceis com sinais de guerra onde o natural já quase se não reconhece. Os nossos sobreiros não são verdes, pois não? Não quisemos que houvesse distância nem imagens prontas a consumir. É o espectador que terá de construir as suas imagens. E com isso se há-de divertir também como nós. E pode, como nós fizemos, inventar novos gigantes, novos mitos que falam da humanidade como agora a gente a entende. A gente gostava que o Ladrão a enterrar o recém-nascido fosse um novo Hércules, a Candidinha, a ]oana, a Mouca mais Deusas que Vénus, Juno ou Minerva, a Cega e Luísa as nossas novas Ninfas e as Velhas outras Parcas. E o senhor Anacleto não é o nosso Caronte? Fala-se da morte, é claro. Até lá está um caixão que uma agência simpática nos ofereceu e que costuma oferecer também aos indigentes. E, está claro também, é de mortos-vivos que o espectáculo fala. A arte sempre serviu de esconjuro.
Há referências de sempre, sobretudo a da pintura expressionista alemã, contemporânea de Brandão e onde reencontramos, como nele, um sentimento da vida que é o de um conflito entre a necessidade de Primavera e o ódio a uma "floresta putrefacta" (a hidra do texto de Müller?) em que a sociedade se tornou, um profundo empenhamento que é inimigo da falsa paz em que nos querem inserir.
Tentámos, contra o cinismo que nos rodeia, fazer um espectáculo diferente dos outros, continuar à procura de uma verdadeira linguagem poética para o Teatro, continuar a "inventar uma língua nova" capaz de nos pôr mesmo a falar.
Luis Miguel Cintra
ESTES TEXTOS
UTOPIA, COISAS PRÁTICAS, REGRESSOS, PROVOCAÇÕES, BELEZA
1. UTOPIA, que é o pior dos insultos, porque diz que a gente não sabe olhar para a realidade de forma a servir-se dela.
"E se fosse luar?" É o Estropiado que fala. Da última vez que o vi, ainda à civil, (na maquete negra do mundo que a Cristina tirou dos livros de geografia por onde estudámos as fracturas da crosta terrestre que nessa altura tinham nomes e por onde nos explicaram que há uma infinidade de anos entrámos numa era a que se chama glaciar) ele estava cheio de raiva. Isto, porque tinha quase a certeza que não era luar o que via, mas um projector que muito provavelmente o incomodava e dificilmente aceitava que esse luar, que ele tinha dentro da cabeça desde o tempo em que foi árvore, e depois banco de madeira no corredor do hospital (e assim falava), nunca voltasse a ser o luar que o ressuscitaria de vez, aquecendo-o de frio, que é o calor que pode haver nas eras glaciares onde as primaveras são negras. Parece-me que era dessa raiva que me apetecia ainda e sempre falar, e, se calhar, ao Luis Miguel, que foi quem me desafiou, e a várias outras gentes que se escondem nas fissuras dos terramotos, mas que existem muito provavelmente e que, a acreditarnlos no Gabiru ao (que tem uma certa alquimia na respiração), hão-de ressuscitar um dia.
2. COISAS PRÁTICAS, que é o contrário da Utopia, mas também não é bom, porque contraria a vocação universal do Homem, que é o que o torna vendável em qualquer parte do mundo.
Mas o problema não era o do luar, mas outro, muito mais comesinho. Há destas coisas: O mundo existe, e até tem pobres, que até são muitos. Raul Brandão, como outra gente louca, olhou para ele e pôs-se a ditar à mulher o que o olhar lhe dizia, sem parêntesis, nem reticências. Fez evidentemente um outro mundo, que é o que se faz com palavras. Se assim não fosse, para que é que elas serviam?
O Luis Miguel pediu-me que eu olhasse para o mundo que ele escreveu com mais atenção do que é costume -Olhei, então, a pedido, para os textos que o olhar de Raul Brandão tinha escrito, metendo tanto quanto possível no meu, um bocadinho do olhar que imaginei que podia ser o do Luis Miguel, se ele tivesse tempo e paciência para tanta palavra. Dei por mim a encenar a seco, que é uma coisa que não deve ser feita.
Então, com tesoura fiz os rasgões, dilacerações, amputações obrigatórias e com cola cosi os restos como a Cega, à máquina de costura, fiz remendos no pano cru, nas chitas e sedas que as personagens haviam de vestir, como a Mouca ri, como o Gebo geme (e como a Cristina havia de cortar à faca um quadrado de terra de 8 por 8 onde tudo tinha que caber).
Era um terceiro mundo, claro. E se ele não fosse mais parecido com o nosso (o do teatro e o da vida de todos os dias que temos) do que com o de Raul Brandão (o dos textos e da vida de todos os dias que ele tinha) valeria a pena tanto trabalho?
Tanto trabalho: convencer-me que quase tudo tinha de ir para o cesto dos papéis, convencer-me de que os actores, o público haviam de gostar de aguentar a violência, o tempo, o inverosímil, o ridículo, a miséria, a grandeza, o peso.
3. REGRESSOS, que muitas vezes não são o contrário da Revolução que ainda não foi feita, e que a custo se nomeia, com medo de acordar, não seja ela um morto-vivo como qualquer outro.
E se fosse cinema?
Era mais fácil com certeza manter a incerteza: onde acaba uma personagem e começa a outra? Onde acaba uma história e começa a seguinte? Onde acaba a memória e começa a fala? Tantas técnicas, tantos efeitos especiais, se fosse cinema... E depois, bastava contratar uns figurantes ao dia e tínhamos num segundo uma multidão.
Não é por acaso que um dos gabirus quer "cinematografar" as plantas. Quer dizer: a vida. Mas acaba por esvair-se numa torrente de pensamentos sobre o mundo onde gregos e troianos se reconhecem, frase sim, frase não, por entre verdades eternas.
Voltemos então às apostas antigas: as artes não se fizeram para contar histórias, o que acontece é que às vezes contam. Contar uma história, para quê? Contar mil histórias numa só, isso sim. E essa história única seria sempre a história de 3 horas de matérias e materiais que se transformam porque sim - movimentos, gestos, objectos, luzes, sons articulados e uma banda sonora.
E nos ensaios, que é o que importa, porque há pessoas de carne e osso, e os obstáculos são o verdadeiro espectáculo - (e então vê-se na carne e no osso que a facilidade não passa de um logotipo de plástico das democracias de sucesso) pude ver a família do Gebo em plano americano, o ladrão em contra-plongé as sombras do expressionismo todas - miseráveis, bandidos, super-homens, - que agora são coisa de arquivo e deixaram de nos pregar sustos nas cadeiras de pau dos cinemas de bairro.
E se nos assustassem aqui? Ó Eisenstein, ó Dreyer, ó todos esses. E porque não chamar também pelo Godard, pelo Rohmer, pelo Rivette? - que o Raul Brandão terá passado certamente, ressuscitando como a Enforcada, pelo 25 de Abril e seus contrários mais os novos "equipamentos sociais" - mobiliários industriais da saúde e da educação à disposição dos que continuam evidentemente a não ter nem paz, nem pão, nem educação, nem saúde, nem habitação.
4. PROVOCAÇÕES, que é coisa que já não se usa: quem reparou que o Luís Pacheco disse em Braga que "Deus é uma galinha - e a Agustina também"?
Raul Brandão falou da Revolução de 1917, sua contemporânea. Preocupou-se, assustou-se, entusiasmou-se, percebeu que o mundo mudava (não mudou?). Raul Brandão ouviu, na posição de modesto entrevistador de jornais que ninguém lia, os jovens dirigentes sindicais com que nos cruzámos ainda - esses velhos militantes operários com a juventude eterna dentro (o mundo não mudou?).
A Primavera (Negra) não é só a dos sapos e das árvores em Fevereiro. Quem provoca mais? O Proprietário Rural ou o Revolucionário - e é um único texto repartido entre os dois que eles usam, quando discutem, pois é. Quem provoca mais? O Filósofo com o seu ensimesmamento na ponta da caneta ou o Ladrão que se serve da navalha para falar a quem passa? Quem provoca mais? A Candidinha a vomitar ódio pelos ricos aos saltinhos ou a Santa Eponina que beija a boca em chaga dos leprosos? Quem provoca mais? O Avejão que faz rebentar a Velha à força de memória ou a Velha que põe medo aos filhos, ao padre, às outras Velhas? A Joana que esfrega o chão ou o Anacleto que vende caixões para mortos?
5. A BELEZA porque é uma transgressão, e vem donde não se espera e transborda (impressões de ensaios).
Cada actor, cada personagem, no seu buraco, uma multidão.
Prostitutas com lustre ao lado: saberão sequer que estão num campo de concentração daqueles que todos os dias há nos telejornais e nos países - em África, na Europa, nas Américas?
Quando a corda do Revolucionário chegar ao fim, talvez ele consiga voltar a andar em frente. O lustre sobe mas não ilumina: o super-homem é mentira. O Conselho de Estado é o país das maravilhas ao contrário: há chapéu alto e cartas desmesuradas. Mas não há coelho. A Alice só pode estar na bancada.
O Ladrão e a Asilada são os mais belos amantes do mundo.
Até que o espectáculo saia de cena, não haverá maneira de saber tanta coisa que alarma e seduz: nem sequer se o menino estava vivo ou morto quando foi enterrado. O que conta, durante um tempo, é o trabalho: os actores, a construção do espaço, da música, a encenação com tudo o que lá cabe dentro e não cabe. Os textos, esses, estavam escritos há muitos anos e hão-de voltar à sua ordem natural, depois de se terem posto à nossa disposição por um tempo. Regressarão iguais?
Eduarda Dionísio
7 Fev 93