A Margem da Alegria
de Ruy Belo
Encenação Luis Miguel Cintra
Assistente de encenação Luís Assis
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistentes de cenografia Linda Gomes Teixeira e Luís Mouro
Montagem Manuel Vitória e Alexandre Freitas
Iluminação Luis Miguel Cintra e Pedro Marques
Vídeos Ricardo Resende e Cristina Reis
Gravação da banda sonora Emídio Buchinho
Material fotográfico Duarte Belo e Cristina Reis
Operação de luz, som e vídeo Pedro Marques
Contra-regra Alfredo Martinho
Cartaz Cristina Reis
Interpretação
António Fonseca
Luís Lima Barreto
Luis Miguel Cintra
Luisa Cruz
Manuela de Freitas
Márcia Breia
Manuel Cintra (voz gravada)
Músico Paulo Galvão
Música cantigas de amigo de D. Dinis
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 25/07/1996
21 representações
Companhia subsidiada pelo Ministério da Cultura
Este espectáculo não é bem um espectáculo. Chamem-Ihe celebração. Esta companhia tem toda uma geração de "espectáculos" assim. Que o não são exactamente e onde no entanto ela se dá mais que nunca completamente em espectáculo.
Quem se lembra de ORATÓRIA? Quem viu a MAUSER sobre cuja imagem se construiu agora este espectáculo em sobreimpressão?
Quem percebeu a razão de ser da conferência-espectáculo para as escolas sobre Anrique da Mota? São, aliás, sempre espectáculos que não estavam programados, que conseguimos produzir entre dois projectos há muito mais tempo preparados e que marcam pontos de crise na nossa relação com o público. Vontade de destruir equívocos. Fazer o ponto da situação depois de êxitos ou fracassos. Pontos nos iii. Há 23 anos já, são vários, graças a Deus. Momentos de cansaço, vontade de mudança. Este espectáculo é um desses e que nos perdoem se estamos nele, como sempre nos espectáculos assim, a reflectir à vossa frente, a falar-vos cara a cara, a ver se vos conseguimos olhar nos olhos, mas também é sobretudo a celebrarmos ideias, e a pormos em causa o nosso próprio ofício, o próprio palco, o ofício teatral.
Porque o uso que todos nós (não falo agora já só da nossa companhia) fazemos das tábuas, talvez não seja sempre o mais nobre. As coisas fogem-nos das mãos, tomam-se facilmente em tregeito, pose, imitação, rotina. A verdade é que no palco não se fazem as coisas mais importantes da vida. Há direito que um bébé recém-nascido se tome em espectáculo? Ou que se faça amor no palco diante dos espectadores? Pode-se morrer em cena sem que o palco se tome obsceno? O palco é só um lugar de jogo, quase sempre invenção de lugares imaginados, coisa, aliás, fundamental. (Será por isso que tanto nos custa que a gente que está em cima do palco nos fale a sério cara a cara para a plateia?). Mas é fácil que o jogo de repente deixe de ser encontro. Ou seja só encontro, como podia dizer o Ruy, desencontradamente, dentro da caixa. E não queremos que o palco deixe de ser o melhor lugar de encontro deste tempo de alguma solidão escondida atrás da festa. Quase todos nós neste momento sentimos a importância que ele pode e deve ter, tentamos outra vez definir-Ihe ou inventar-Ihe funções nas novas regras do jogo. Suspeito que talvez o teatro tenha agora de passar pela multiplicação de minorias contra o susto da uniformização do público nas grandes salas ou, o que é menos bonito, mas talvez mais fácil, pela utilização das grandes salas à vez, por muitas minorias diferentes. Adiante.
Seja como for, o palco pode e deve ser em muitos especiais momentos, tribuna. Há dias em que nos dá vontade de parar com a brincadeira, convidar a palavra quase sem disfarces e falar. Falar convosco. Se nos quiserem ouvir. A ideia deste espectáculo partiu da vontade de prestar um testemunho. O testemunho íntimo de uma geração agora às voltas com o seu envelhecimento. Orgulhosa ou envergonhada do que pensou. Reconhecendo-se ou não na sua pele. A minha geração é o reino da paixão. Do excesso. Quis a morte do bom-senso. Esta é a nossa poesia em 1974. Assim continuamos a sentir? Como se ama agora?
Dizer este poema, representar este texto, obriga-nos a uma verdadeira celebração da emoção. As memórias comuns, os laços sentimentais, as saudades que ligam alguns de nós aos versos do Ruy ainda tomam mais numa violência trazer para o palco estas coisas. Perdoem-nos um ou outro arrepio. Mas que temos a esconder? E temos esse direito? Qualquer encontro, todo o jogo, o teatro, passam necessariamente por alguma capacidade de exposição, por um despojamento.
Mas a nossa geração é também uma geração da ironia, de cumplicidades. E as próprias palavras do poema nos ajudaram a também brincar. Não só o teatro é jogo. E do profundo humor desta poesia e do seu prazer em trocar as voltas ao discurso, fazer música com a voz e com os sentidos das coisas, desse gosto por baralhar nomes e dar outra vez, fizémos algum espectáculo. E tentámos construir jogos sobre as maneiras de representar a vida ausente. Ou presente, não sabemos bem. Trata-se para nós também da margem da alegria. Essa margem que há antes da morte. "entremos juntos na neblina do Outono"
Luis Miguel Cintra