Sete Portas
de Botho Strauss
Por vezes, durante minutos que se prolongam em demasia, a grande lufa-Iufa, a nossa vida quotidiana, parece dançar na orla do fogo. É então que se não vê apenas uma porta, mas sim sete, entreabertas. Tal poderia significar o verdadeiro fim; uma irremediável desmesura de saídas! Não uma saída livre, mas uma série de saídas, todas elas livres, que nos não deixam qualquer oportunidade de enveredar pelo único caminho certo. Perante os segredos violados - perante uma arena de portas entreabertas que nos atraem, permanecer sentado é a coisa mais definitiva do mundo. Porque, pouco depois, se desvanece a ilusão; foi tudo uma partida maldosa, que o diabo pregou aos nossos sentidos. Aqui não é o limbo, aqui não é o inferno em versão suave, e o diabo está apenas na comparação mal feita. Botho Strauss, SETE PORTAS
Tradução Renato Correia
Encenação Luis Miguel Cintra
Assistente de encenação Natália Vieira
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistente para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira
Montagem Fernando Correia
Assistente de montagem João Alves
Iluminação Luis Miguel Cintra
Montagem eléctrica e operação de luz e som Ricardo Madeira
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Aline Sêco, Piedade Duarte, Ofélia Lima e Teresa Cavaca
Manutenção do guarda-roupa Alice Madeira
Contra-regra Alfredo Martinho
Cartaz Cristina Reis
Interpretação
Adriano Luz, António Fonseca, Diogo Dória, Gilberto Gonçalves, Glicínia Quartin, Luísa Cruz, Luís Lima Barreto, Luís Lucas, Luis Miguel Cintra, Manuela de Freitas, Miguel Guilherme, Natália Vieira, Paulo Pinto, Rogério Vieira e Teresa Roby
O SENHORIO
O Inquilino Rogério Vieira
O Presidente do Conselho de Administração Miguel Guilherme
REGRESSO A CASA
O Encenador Luis Miguel Cintra
A Mulher Teresa Roby
O Homem Luís Lima Barreto
UM ERRO
A Senhora do Microfone Manuela de Freitas
O Que Exorta e Adverte Gilberto Gonçalves
NO SALÃO AUTOMÓVEL
O Primeiro Homem Luís Lucas
O Segundo Homem António Fonseca
O Vendedor Paulo Pinto
REFÚGIO
O Homem Luís Lima Barreto
A Mulher Teresa Roby
O Prisioneiro Miguel Guilherme
OS GUARDAS
O Guarda Costas Diogo Dória
O Guarda do Parque Adriano Luz
UM MENSAGEIRO
O Mensageiro Rogério Vieira
O Homem Luís Lima Barreto
A CARTEIRA DE PELE
O Empregado Paulo Pinto
A Primeira Cliente Manuela de Freitas
A Segunda Cliente Luísa Cruz
A Terceira Cliente Glicínia Quartin
Primeira Polícia Luís Lucas
Segunda Polícia António Fonseca
O SUICIDA E O NADA
O Suicida Diogo Dória
O Nada Adriano Luz
DIA DE CASAMENTO, À TARDE
Ela Manuela de Freitas
Ele Luis Miguel Cintra
ÍDOLOS
A Rapariga Luísa Cruz
O Homem Luís Lima Barreto
O Jovem Paulo Pinto
NO BANCO COMPRIDO
A Rapariga Luísa Cruz
O Homem Luís Lima Barreto
A Mulher Teresa Roby
Frei João Luís Lucas
Frei Nando António Fonseca
Colombina Gilberto Gonçalves
A Jornalista Glicínia Quartin
A Satisfeita Natália Vieira
O Imperador Juliano Diogo Dória
O Fala-Baixo Adriano Luz
JEANNINE
Primeiro Homem Rogério Vieira
Segundo Homem Miguel Guilherm
Empregados de Escritório Adriano Luz, António Fonseca, Luís Lucas, Luis Miguel Cintra, Luísa Cruz, Miguel Guilherme, Natália Viera, Paulo Pinto e Rogério Vieira
Desportista Paulo Pinto
Nota: A CARTEIRA DE PELE e JEANNINE não figuravam na primeira edição da peça. São duas cenas suplementares acrescentadas por Botho Strauss para a estreia da peça em Estocolmo. A CARTEIRA DE PELE é dedicada a Luc Bondy. Para a representação da peça, o número e a sucessão das cenas são deixadas à escolha dos teatros. Conservámos todas as cenas, introduzindo as cenas suplementares na ordem das outras cenas proposta pelo autor.
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 28/05/1993
56 representações
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
Apoio de Jornal de Letras, Expresso, Cristina Lima, Margarida Leite, Jorge Alberto Gonçalves, Polaroid, e Superconfex
Apoio do Goethe-Institut de Lisboa para a tradução do texto e os direitos de autor
Encenámos na PRIMAVERA NEGRA um nosso sentimento da vida. Um espaço denso, denso de paixão, de revolta. Um encontro violento com o mundo. Para falarmos do mundo contemporâneo pusemo-nos a nós em cena, representámos o mundo com os corpos deformados, os andrajos, o espaço concentrado, as linhas tortas, as cores sombrias que nós sentimos que ele tem ou que nele vêem os nossos corações, adoptámos o expressionismo de Brandão e na representação dessa visão apaixonada do mundo levámos para cena um manifesto. Falávamos além disso de Portugal.
Em quase tudo este SETE PORTAS difere do espectáculo anterior. Este espectáculo gostaria de ser, tal como o anterior, um espectáculo que se referisse a um tempo presente. Mas ao contrário do outro este espectáculo já vos não diz coisas, já não nos expõe, já não é a representação de um ponto de vista, de uma opinião. Este espectáculo é talvez apenas uma fotografia, uma fotografia do mundo como Europa, se quiserem também de Portugal, mas de um Portugal onde não nos reconhecemos, um Portugal já informatizado, já Comunitário Económico, já Europeu. É a vida vista da máquina. De fotografias se fala, aliás, tanto nesta peça. Da redução da vida a reproduções fotográficas. Congelar o tempo. Este espectáculo é um espectáculo frio. Talvez um espelho. Tão frio e tão vazio como todos os espelhos.
E que vemos nesse espelho? Vazio outra vez. Nada. Pequenos nadas. Bagatelas. Anonimato. Uma enorme ausência: a ausência do real. E a impossibilidade da transcendência.
"Mas não pode ser só isto" diz um dos Dominicanos que estão no banco comprido do fim da peça. Mas é só isto, responde-lhe o outro. E não é pouco, apetece-me a mim acrescentar. São fotografias da hora zero. O cavalo possesso? As aves retalhadas? Os filósofos de rosto lívido? As torres a ruir? 0 que lhe queiram chamar. São também ilusões, figurações. Palavras. Talvez figurações de sonhos. Falta justamente tocar o real.
Raras vezes tive em mãos material tão fugidio como esta peça. E o que acabareis por ter diante de vós será com certeza a encenação desta mesma sensação, deste vazio. A sensação talvez que se terá perante um enigma, uma caixa de segredos, a esfinge. O tal momento em que se não vê apenas uma porta mas sete, o verdadeiro, fim. A encenação de um momento de angústia. Também o vazio de uma fotografia. É de facto uma peça que temos em mãos? Pequenas anedotas. Com humor? Segundo o próprio autor, sem ordem fixa sequer. Pode ser uma ou outra, pode saltar-se a que se quiser. Não sabemos sequer que corpus tem. São bagatelas. Que acção? São conversas. Sobre quê? Diálogos filosóficos? Talvez. Mas de nada se fala. A linguagem engendra-se a si própria e apenas a si própria se refere. A relação com o real perdeu-se. E há situações? Há. Situações que são a projecção abstracta de situações modelo. Módulos de situações. Há a sobreposição de situações, sobre-impressões: personagens em sofás, encontros/desencontros a dois. As situações são afinal esquema. O sítio deixou de existir. E há personagens? São pessoas estas personagens? São certamente anónimas. Chamem-lhes Horst, Tietze ou Senhor Gorschinski, sejam processadores de dados ou filósofos, correspondem a um padrão. Como diz o nosso Homem, o novo Adão, Everyman: as profissões são todas iguais. São pares, casais, e são possantes, transeuntes. Não há a outros modelos. Serão protótipos? Serão tipos? Serão exemplos? Não sabemos. Agora a talvez as pessoas já sejam todas iguais. "Quem sou eu?" Isso ninguém pergunta. Haverá neste espelho lugar para o monólogo? Para um encontro consigo? O Fala-Baixo do banco comprido não fala para o público? Não se dá em espectáculo? "O que é que eu sou?" já pergunta o Todo-o-Mundo ou o Ninguém. Mas não se lembra como se chama o que é, a sua profissão. "Quem é você?" pergunta muita gente para não ter de dar respostas: são produtores de perguntas, geradores de discursos, indagantes. Menos para conhecer que para esconder o real. Estes diálogos existem para tapar um silêncio. Estes casais falam para substituir uma relação. O pensamento é autofágico como o automóvel que dois destes personagens queriam comprar. O desejo foi substituído pelo seu nome ou pela sua imagem, ou pior ainda, pela sua jurisdição.
Este texto é filosófico? Conhecer parece ser a questão chave desta peça enigmática. É na relação com o real que o mundo adoeceu. E o cenário que Botho Strauss nos propõe não é uma caverna de Platão? Aquele semi-círculo abstracto com sete portas mágicas que espaço é? O castelo do Barba-Azul? Tebas, a cidade? Um espaço mental? Um écran? Que imagens nele se projectam? É difícil encenar e representar um vazio. Não há heróis na nossa Europa. E poderá ainda haver teatro? Como se torna concreto um material totalmente abstracto? Existem ainda lugares, pessoas, coisas que os homens desaprenderam de conhecer? Como reinventá-Ios? O nosso trabalho foi tentar tornar concreto o lugar abstracto em que a peça se passa. Tornar concretas as personagens, as situações, os modelos, que o texto prevê. E afinal fizemo-Io com novos modelos, formas esvaziadas com que preenchemos o vazio.
Fomo-nos reencontrando com uma imagem da realidade, mas terrível, e provavelmente tão escura como a da filha Jeannine do político do último diálogo. Fomos esbracejando para reencontrar a distância, o ponto de vista que adivinhamos em Botho Strauss, e que permite o humor - uma inteligência e um sorriso irmãos de Tchekov que quereríamos aprender do texto mas que ainda nos são difíceis de conquistar. Poder dizer: pobres mortais! SETE PORTAS não é antes uma brincadeira sem mais consequências? Ou música com as palavras dos nossos dias? Bagatelas como a peça de Lizt em fá sustenido que escolhemos para abertura do espectáculo ou a Folha de Álbum em forma de valsa?
De uma forma ou outra é um pequeno Teatro do Mundo, deste nosso Mundo, que aqui fica. Em que a alegria se esvaziou. E o amor. Ainda há melancolia?
Luis Miguel Cintra