Filoctetes
de Sófocles
Recriação poética Frederico Lourenço
Encenação Luis Miguel Cintra
Assistente de encenação Manuel Romano
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos
Desenho de luz Daniel Worm d’Assumpção
Director Técnico Jorge Esteves
Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo e Abel Fernando
Montagem de luz Rui Seabra, Marco Jerónimo e Carolina Venâncio
Operação de luz Rui Seabra
Guarda-roupa Emília Lima
Costureira Maria do Sameiro Vilela
Alfaiate A. da Costa
Conservação do guarda-roupa Vânia Duarte
Contra-regra Manuel Romano
Cartaz Cristina Reis
Secretária da Companhia Amália Barriga
Interpretação
Ulisses António Fonseca
Neoptólomo Duarte Guimarães
Coro de Marinheiros Luís Lima Barreto e Martim Pedroso, Nuno Gil e Tiago Matias
Filoctetes Luis Miguel Cintra
Vigia disfarçado de Mercador António Fonseca
Héracles José Manuel Mendes
Vigia André Silva
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 19 de Outubro a 26 de Novembro 2006
34 representações
Estrutura financiada pelo Ministério da Cultura/IA, Instituto das Artes
Adiámos muitos anos a tentativa de pôr em cena uma tragédia grega clássica. Duvidávamos da nossa capacidade de transposição para os nossos pequenos, escuros e minoritários teatros desse teatro de multidões ao ar livre onde os actores levavam máscara e coturno, cantavam e dançavam, e toda a cidade reconhecia as histórias violentas da sua mitologia. O teatro grego clássico, fundador da nossa civilização, é irremediavelmente antigo. E no entanto, comoveram-nos para sempre alguns exemplos de aproximação recente à tragédia, adivinhados de longe por vídeos e fotografias: AS BACANTES de Grüber, a ORESTEIA de Stein. Ou o recurso por alguns encenadores a alguns desses processos cénicos antigos como os coturnos e a melopeia d’AS CRIADAS de Genet/Vítor Garcia. E sempre nos comoveram as reelaborações que os séculos foram tendo vontade de fazer dessas tragédias antigas, nomeadamente toda a tragédia francesa em versos alexandrinos do século XVII ou as recriações contemporâneas de Heiner Müller. Para quem leva este ofício a sério, chegará sempre o desejo de se confrontar, nem que seja uma vez, com um desses textos onde começa a história do nosso teatro, da nossa ameaçada humanidade e da vida política das nossas cidades.
Fazemo-lo agora, antes que seja tarde demais, primeiro porque encontrámos um tradutor. Mais do que qualquer outro, o teatro grego para nós são agora acima de tudo palavras, poesia, e só conseguindo ouvi-las em grego e reinventando-lhes a música no nosso português actual (como fez a Sophia, com quem todos aprendemos a amar a Grécia, quando as traduziu), elas ainda poderão subir ao palco e ser ouvidas e passarão para a alma de actores nossos contemporâneos. Antes do mais fazemos esta tragédia porque o Frederico Lourenço com alegria e generosidade no-la recriou.
Mas fazemo-la sobretudo por uma enorme teimosia, a de não desistir, modestamente é certo, de alguma vontade de intervir com os nossos espectáculos na nossa vida pública. Ainda temos a ilusão de “educar”. Pelo menos de dar que pensar. E temos o prazer de nos entregarmos a esse exercício. Criar aberração. Quisemos confrontar-nos e confrontar-vos com um debate moral que é completamente alheio à superficialidade, ao psicologismo, à imediatez, à irresponsabilidade, à desumanidade, do viver das nossas sociedades civilizadas. Revivendo esta peça distante, gostaríamos de criar algum abismo: há 25 séculos o Homem já foi isto, descobria a sua humanidade, inventava-se com esta consciência moral. E com que limpidez!
No Filoctetes encontrámos uma tragédia especial, uma especial depuração da violência trágica. Não há acções violentas, não corre o sangue, a violência é interior, não traz espectáculo, a tragédia põe a nu a sua essência, a violência é a dos conflitos morais. Tudo parte de um pressuposto: o Homem será o que for a responsabilidade moral de cada um. E essa responsabilidade gera-se na permanente tensão entre integridade individual e bem comum, porque vivemos com os outros, e também no conflito entre códigos morais e situações de vida, ressentimentos, afectos, acasos, desejos, privações, coisas tão da alma como do corpo, fome, doença, e da nossa convivência com o mundo natural, vento, tempestades, animais, rochedos, mar, prados e árvores. O Filoctetes é uma peça que nega a solidão. O terror que o seu herói titular provoca é sobretudo esse: o da sua monstruosa solidão. É certo que Filoctetes foi injustiçado, ele foi traído e é justo o seu ressentimento. Foi injustamente condenado a estar só. E a sua vingança será não ajudar os que o traíram a vencer Tróia, será esquecer o bem comum, será permanecer na sua solidão. Mas não creio que se trate aqui sobretudo de justiça, ao contrário do que acontece em muitas outras tragédias. E ainda bem, já que a nossa consciência cristã nos trouxe o perdão. Não é para castigar que Filoctetes não quer voltar a juntar-se ao exército dos gregos. Filoctetes, ressentido, quer viver o orgulho da sua solidão. Mas os deuses, ou o destino, e aquela parte generosa da vida que não decidimos nós, não o permitem. É o destino que manda Filoctetes dobrar o seu orgulho e é também o destino que lhe traz Neoptólemo, o anjo que o faz viver a consciência da sua impossível e absurda solidão, da sua tragédia.
Em vão nos poremos a ler o Filoctetes como um folhetim. Quem é o mau? Quem tem razão? Ulisses é o vilão ou representa a lucidez política? O aparecimento final de Héracles é um milagre ou uma apoteose espectacular? O Filoctetes é a transformação de um episódio mítico com três figuras e coro, mais representação dos deuses, numa equação para pôr em jogo ideias. Uma situação, um tema, e todas as suas possíveis variações. O problema é só um: ficar sozinho ou viver com os outros. E a descoberta de que os outros não são o mundo. Há mais vida que “o exército ou eu”. Neoptólemo não é o bem comum, não é a cidade, é outro eu.
A maravilha desta equação é como ela se faz carne. As figuras representam padrões de comportamento mas são também verdadeiras personagens. Este Ulisses é também um homem, Neoptólemo é o filho do modelo de comportamento de seu pai Aquiles, que ao de Ulisses se opõe, mas é também um rapaz ingénuo envolvido numa nova responsabilidade, Filoctetes é a personagem completa de um guerreiro humilhado pela doença. O impasse trágico em que vemos Neoptólemo, dividido entre os seus valores herdados de uma natureza sem traição e a sua vontade de futuro, é o retrato de um adolescente que se lança na vida a braços com a sociedade que herdou. O debate moral é sobretudo o encontro dos homens com a História, mas transforma-se ao mesmo tempo no mais tocante encontro de dois homens de duas gerações. A aprendizagem moral de Neoptólemo ou de Filoctetes (quem aprende com quem?) é uma elaborada e tumultuosa operação de sedução. O Filoctetes é também a história de uma amizade, de um desejo de fusão entre dois homens. Com a vida a vida se ensina e se constrói o ser. E se aprende a Esperança. Aqui a política tem a dimensão dos seres humanos. Enorme, como as histórias míticas dos heróis. Filoctetes ensina que a invenção da vida é a descoberta de como viver com os outros sem renunciar a si, “graças ao Destino e à Amizade”. Vence a generosidade. Talvez Ulisses também aprenda com isso por que perdeu na disputa. E nem por isso Tróia deixou de ser vencida. Não é da guerra que esta peça trata. Fala-se de paz. E para isso foi preciso uma luta, o sofrimento.
Não é já com grande espectáculo que é possível reviver estas questões. Serão talvez agora o doloroso diálogo de alguns consigo mesmos. Não sei se o que fazemos é, como conseguiram Grüber e Stein, encenar nos nossos dias uma tragédia antiga. Partimos para este espectáculo só com a ideia de interiorizar, ao gosto do nosso tempo e para que ainda nos tocasse, o que, há muitos séculos, foi tema para toda a cidade. Repugnando-nos qualquer “actualização”. Foi um longo trabalho de discussão e entreajuda por este pequeno grupo de homens-actores, de íntima construção de emoções para dar corpo a texto tão distante, tão radicalmente depurado e austero. Trabalho duro, viril, ainda que com certeza menos que o dos homens nas antigas guerras. Queríamos o contacto mais próximo possível do público de hoje com actores encarnando estes problemas em desuso, ao ponto de poder provocar rejeição. Sem “cenografia” nem “decoração”. Mas a pedir um espaço. Partimos da ideia de um espaço pequeno e tão concentrador da atenção como o lugar dos actores no grande anfiteatro grego, e tão vazio e reduzido à abstracção como uma página em branco, para que nele se dispusessem as figuras com os seus corpos e palavras. Resultou disso este espaço branco não figurativo, este “laboratório” que é também memória de antigas arquitecturas e que tem no centro um espelho que nos faz ver os actores e o espaço quebrados em múltiplas refracções e pontos de vista e que integra nele a presença fundamental do espectador. E uma mancha negra no lugar do excesso. Vestimos os actores com os fatos anacrónicos que para nós melhor representassem a condição das suas figuras no pequeno grande jogo e que melhor “curto-circuito” provocassem. Demo-nos a liberdade de supor que o falso Mercador mandado por Ulisses podia ser o próprio Ulisses nos seus dotes de actor para apesar de tudo não fecharmos as portas a algum sentido de humor que talvez já reconheçamos no texto original. Reduzimos o coro, tentámos também humanizá-lo. Transformámos o vigia na também amada e melancólica presença crítica de um ponto de vista exterior a estes dilemas. Quisemos um espectáculo cru, artificiosamente, eu sei, despojado de enfeites e acessórios. Perto das palavras.
Muito nos facilitou a tarefa de entrada neste pequeno grande mundo a tão boa ideia do Frederico para o arranque da obra: o corte da exposição inicial dos antecedentes míticos e da situação e a construção de uma entrada “a quente” com o já talvez desesperado “Entrega-te a mim.” de Ulisses a um jovem Neoptólemo decidido a fugir-lhe e a descobrir o seu próprio caminho. É para os mais novos que continuamos a fazer estas coisas. Para o prazer de com eles nos ser dado conviver.
Luis Miguel Cintra