História do Soldado
Música de Igor Stravinsky / texto de C.F. Ramuz
Tradução Mário Cesariny
Direcção musical João Paulo Santos
Encenação Luis Miguel Cintra
Assistentes de encenação e direcção de cena Hugo Reis (musical) e Manuel Romano
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos
Desenho de luz Daniel Worm d’Assumpção
Director técnico Jorge Esteves
Construção e montagem de cenário Abel Duarte e João Paulo Araújo com a colaboração de Alexandre Araújo
Montagem de luzes Elias Macovela, José Álvaro Correia e Rafael Polónia
Operação de luzes Rafael Polónia
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Maria Barradas, Maria da Conceição Santos, Maria do Sameiro Santos e Maria Helena Moreira
Alfaiate José Carlos Almeida
Conservação do guarda-roupa Alice Madeira
Contra-regra Manuel Romano
Cartaz Cristina Reis
Secretária da Companhia Amália Barriga
Interpretação
O leitor Luis Miguel Cintra
O soldado Ricardo Aibéo
O diabo Luís Lima Barreto
A princesa Sofia Marques
Músicos
violino Klara Erdei
contrabaixo Pedro Wallenstein
clarinete Jorge Trindade
fagote Carolino Carreira
trompete Pedro Monteiro
trombone Hugo Assunção
percussão Richard Buckley
Agradecemos a colaboração de Fátima Ferreira, Maria do Carmo Vasconcellos, Coronel Ribeiro de Faria (Museu Militar), Teatro Nacional de São Carlos e Teatro Experimental de Cascais
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 23/05 a 09/06/2002
14 representações
Almada: Escola D. António Costa. 15/07/2002
1 representação
(espectáculo integrado no Festival de Almada)
Porto: Teatro Carlos Alberto. 28 a 29/01/2006
3 representações
Co-produção Teatro da Cornucópia/Teatro Nacional de São Carlos
Estrutura subsidiada pelo Ministério da Cultura/IPAE, Instituto Português das Artes do Espectáculo
Stravinsky tem razão. A música não é só uma questão de ouvidos e cabeça. E muito menos de delíquios sentimentais. A música são corpos em movimento, energia dos braços e das mãos e dos pulmões, da boca e dos pés, e da garganta quando se canta, são músculos a produzir sons, e o bater do coração. Ela entra e sai do corpo todo. A música é sempre uma forma de dançar. A música num palco vê-se e dá vontade de dar a ver. Gosto muito de levar a música para o palco. Puxa pelo corpo. É por isso que a um maestro nunca se diz que não. Foi isso que com este espectáculo aconteceu. Este espectáculo da Cornucópia é mais uma resposta a um desafio antigo do maestro João Paulo Santos que nesta casa, para nosso orgulho, se estreou na direcção de ópera, com O URSO de William Walton, e com quem já trabalhámos muitas vezes, sempre com gosto, e com quem, já há um ano e tal (como o tempo passa!), para nossa alegria, levámos à cena THE ENGLISH CAT de Henze e Edward Bond.
Começámos este outro trabalho pouco tempo depois, faz agora um ano, porque surgiu a oportunidade de apresentarmos a HISTÓRIA DO SOLDADO em versão de concerto no Festival de Música de Coimbra e no Festival de Teatro de Almada. A ideia foi desde sempre representá-la em português, que este texto é para toda a gente entender. Mário Cesariny pôs-nos nas mãos o manuscrito da tradução que nos anos sessenta fizera para uma encenação de Carlos Wallenstein. Foram estes dois pontapés de saída que nos atiraram agora finalmente para o palco. E a preciosa disponibilização dos nossos sete músicos da Orquestra Sinfónica Portuguesa pelo Teatro Nacional de S. Carlos.
É difícil, quando se aborda esta obra, não ser fiel ao seu projecto original. Fica-se agarrado à história da sua estreia, à bela ideia do teatro ambulante, da pequena orquestra de solistas no palco, de uma peça "tocada, representada e dançada", ao que há de exemplar em tudo isto e no que se sabe da colaboração de Stravinsky com Ramuz e da criação dos cenários e dos figurinos de Auberjonois, e da intervenção dos Pitoeff e do maestro Ansermet, e até do mecenas Weinhart. Os desenhos do primeiro cenógrafo são comoventes. Sente-se no que essa gente diz que fez e como fez, uma paixão artística, uma alegria de inventar e inovar, que admiramos demais nesse princípio do século XX e que, estranhamente, cem anos depois, ainda hoje é demasiado moderna para ser fácil imaginar outra coisa, para sobre ela já inventar outra vez. Para nós esse princípio de século ainda não é bem passado. Formou-nos ainda, aos mais velhos. Temos saudades. Debatemo-nos, neste nosso trabalho, com o nosso entusiasmo por esse tempo que sentimos como recente. Ainda começámos por tentar recriar o pequeno palco da primeira encenação, andámos às voltas com a representação de cada lugar, ponderámos se seria de adoptar a solução original das máscaras para cada metamorfose do diabo até à cara finalmente a descoberto do fato nobre da marcha triunfal, hesitámos sobre as nossas capacidades de coreógrafos e bailarinos. A pouco e pouco fomos passando para o lado de dentro e deixámo-nos levar na roda viva. Deitámos fora a primeira maquete de cenário. O que nos apetecia, mais do que inventar ambientes ou imagens acabadas, era, como na música, o jogo permanente da construção de referências e sua imediata desconstrução, era um espaço em movimento, uma dinâmica. A pouco e pouco fomo-nos libertando das didascálias e das ideias da primeira encenação. As transformações do diabo, quisemos torná-las em óbvia mascarada longe de qualquer verosimilhança, pelo puro prazer de brincar, e o diabo passou a ser um "faz-tudo" escondido com o vermelho de fora. E logo apareceram os cornos do velho diabo vicentino e um lugar também, quando devia revelar-se, na marcha triunfal, para um mefistófeles de um baile de máscaras de algum velho teatro. (Aliás, o soldado percebeu logo que ele era o diabo. O que o soldado não sabia é que o diabo lhe ia roubar o tempo). As danças apeteceu-nos também torná-las nossas, sem nenhum saber de bailarinos. A Sofia nunca teve aulas de dança, mas entrou-lhe a música no seu corpo de actriz e com as suas improvisações acabámos, sem darmos por isso, por coreografar o que acabou por ser talvez um pequeno número de cabaré. Mas ficou de sapatos vermelhos como na estreia de 1918 por causa do filme que muito amamos. Puxados pelas graças de escrita de Ramuz, que corta a palavra ao leitor para pôr os actores a falar, e põe o leitor a fazer tantos papéis, e de Stravinsky, que põe a música a narrar, anulámos a separação entre os três elementos: orquestra, leitor e palco. O leitor saltou para as cenas, a música saltou para o leitor e as personagens vão à orquestra e à mesa do leitor. Todos ao mesmo tempo em acção. O abrir e fechar da cortina deixou de ocultar as mudanças de cena, passou a ser um separador, e a própria cortina se vestiu de prata para um sonho de felicidade que não sabemos se é da orquestra, do soldado ou do leitor. Muito trabalho bom para parecer pouca coisa.
Como sempre, trabalhando é que fomos percebendo a obra que tínhamos em mãos. E foi a música que venceu. Quando há um ano apresentávamos o projecto ao público em Almada, ainda em versão de concerto, dizíamos: "AHISTÓRIA DO SOLDADO é uma obra de teatro". Agora, depois de a levarmos para o palco, já nos apetece dizer: A HISTÓRIA DO SOLDADO é uma obra de música.
É verdade que a fábula que, por sugestão de Stravinsky, Ramuz dramatizou a partir de um conto popular russo, nos fala da desgraça de um soldado raso e que, em 1917, quando os nossos autores nela pensaram, ela lhes lembrava o tempo presente da guerra de 14-18. É verdade que o retrato inicial do pobre soldadinho com fome, de saco às costas cheio de nada, para além dum violino que lhe dá alegria, e que vai de licença à terra para ver a noiva e a mãe, nos fala do zé ninguém e nos puxa para dentro da vida. E é verdade também que o conto nos diz várias verdades de sempre como que "o dinheiro não traz felicidade" e que "ao tempo ninguém foge", e que "sonhos são quimeras" e que "quem tudo quer tudo perde". É verdade que esse conto nos fala da impossibilidade de "everyman" ser feliz, fala da desgraça da condição humana. Esse diabo multiforme; que constantemente lhe aparece por dentro da vida e o leva para lá da sua resignação é isso que, com ironia, constantemente vem mostrar. Mas quando a gente a começa a representar, logo percebe que o que verdadeiramente faz A HISTÓRIA DO SOLDADO não é o conto triste do soldado, é muito mais a festa do movimento em que, apesar de tudo, o retrato do soldado se vai desdobrando, é a energia pura, e cega é certo, é uma vertigem do tempo, e isso é a música. A HISTÓRIA DO SOLDADO aparece-nos agora sobretudo como um sofisticadíssimo e divertidíssimo jogo de formas, dramáticas e musicais, e quem afinal o elabora é a música rainha (de copas).
Tudo nas formas que estão em jogo nos puxa para uma memória da vida e das artes que todos conhecemos: as formas são populares e são tradicionais. São, na origem, russas, (tanto como nesse momento os quadros de Chagall ou toda a arte dos primeiros anos da Revolução que mudou o mundo), mas, porque são populares, são, como queria Stravinsky, também universais. Trazem para cena a natureza humana: é o contador de histórias, é a barraca de feira, é o circo, a fanfarra, a valsa, o tango, o foxtrott, o órgão da igreja, o mafarrico, as festas de aldeia, o conto do vigário, o sonho americano, as histórias de princesas encantadas, os autos populares e até o doutor fausto. Tudo com humor, tudo depurado e reduzido à expressão mais arquetípica da percepção concreta, sensorial. Tudo a lembrar todo o mundo e a nossa condição de sempre. Mas sobretudo um jogo. E é Stravinsky quem baralha as cartas, quem as arruma e desarruma, quem brinca com as brincadeiras dos processos narrativos de Ramuz. É ele quem as movimenta e faz deste teatro uma espécie de permanente dança da morte que transforma em festa a própria melancolia. É a música quem afinal aqui inventa o teatro. O nosso trabalho agora foi deixar-nos levar, rejeitar a decoração, pôr a construção à vista, nada acrescentar ao movimento puro, deixar viver o circo. Foi afinal pôr o teatro a dançar. Lembrámo-nos de Malevitch. Não levámos a sério o ponto de vista do leitor (que não cremos ser um verdadeiro narrador mas sim um chefe de pista). Não lhe entregámos nem vos entregamos uma construção coerente de sentido. A música não deixou. Isso fica a vosso cargo. Se é que existe algum sentido para a nossa e vossa energia. À falta de felicidade, conta mais a alegria que uma lição de moral. O que importa é que o soldado não pare, que não deixe de andar. No inferno já ele está.
Luis Miguel Cintra