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CRONOLOGIA

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118 - 4 AD HOC

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117 - AI AMOR SEM PÉS NEM CABEÇA

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116c - O NOME DE DEUS - O ESTADO DO BOSQUE

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116b - O NOME DE DEUS - Leitura DUAS CARTAS

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116a - O NOME DE DEUS - Leitura GENNARIELLO

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115 - Os Desastres do Amor

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114 - O SONHO DA RAZÃO

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113 - FINGIDO E VERDADEIRO

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112 - A Varanda

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111 - "ELA"

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110 - Morte de Judas

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109 - A Cacatua Verde

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108 - Fim de Citação

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107 - DANÇA DA MORTE / DANÇA DE LA MUERTE

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106 - Olá e Adeusinho

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105 - MISERERE

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104 - A Cidade

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103 - Ifigénia na Táurida

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102 - Menina Else

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101 - A Tempestade

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100 - Os Gigantes da Montanha

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99a - Leôncio e Lena

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99 - Don Carlos, Infante de Espanha

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98 - A Floresta

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97 - O Construtor Solness

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96 - A Tragédia de Júlio César

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95 - Filoctetes

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94 - Ensaios para "O Ginjal"

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93 - A Gaivota

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92 - Sangue no Pescoço do Gato

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91 - A Cadeira

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90 - Um Homem é um Homem

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89 - Esopaida

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88 - A Família Schroffenstein

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87 - Filodemo

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86 - Anatomia Tito Fall of Rome

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85 - Tito Andrónico

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84 - A Vida é Sonho

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83 - Tiestes

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82 - História do Soldado

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81 - O Colar

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80 - O Novo Menoza ou A História do Príncipe Tandi

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79 - Dom João e Fausto

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78 - A Morte de Empédocles

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77 - Hamlet

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76 - The English Cat

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75 - Cimbelino

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74 - AMOR/ENGANOS

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73 - Afabulação

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72 - A Sombra de Mart

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71 - Trilogia Monocromática

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70 - O Casamento de Fígaro

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69 - O Lírio

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68 - Quando Passarem Cinco Anos

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67 - Um Sonho

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66 - Máquina Hamlet

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65 - Sertório

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64 - Os Sete Infantes

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63 - Demónios

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62 - A List

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61 - Barba Azul

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60 - A Margem da Alegria

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59 - Dor

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58 - Um Auto de Gil Vicente

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57 - Splendid's

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56 - A Prisão

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55 - Vai Ver Se Chove

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54 - O Dia de Marte

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53 - O Triunfo do Inverno

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52 - O Jogo das Perguntas

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51 - O Conto de Inverno

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50 - Diálogos Sobre a Pintura na Cidade de Roma

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49 - A Mula, O Clérigo, O Alfaiate e Mais Lamentações

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48 - Sete Portas

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47 - Primavera Negra

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46 - Apanhados no Divã

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45 - Mauser

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44a - Antes que a Noite Venha

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44 - A Missão

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43 - Até Que Como O Quê Quase

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42 - Comédia de Rubena

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41 - Muito Barulho Por Nada

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40a - Façade e The Bear

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40 - Um Poeta Afinado

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39 - Salada

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38 - Céu de Papel

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37 - O Público

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36 - Vida e Morte de Bamba

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35 - Auto da Feira

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34 - Três Irmãs

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33 - Grande Paz

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32 - Vermelhos, Negros e Ignorantes e As Pessoas das Latas de Conserva

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31 - A Mulher do Campo

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30 - A Sonata dos Espectros

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29 - Pai

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28 - A Ilha dos Mortos e Páscoa

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27 - Ricardo III

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26 - O Parque

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25 - Simpatia

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24 - A Missão

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23 - Novas Perspectivas

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22 - Mariana Espera Casamento

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21 - Oratória

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20 - O Labirinto de Creta

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19 - Dou-che-lo Vivo, Dou-che-lo Morto

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18 - Não Se Paga! Não Se Paga!

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17 - Capitão Schelle, Capitão Eçço

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16 - Zuca, Truca, Bazaruca e Artur

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15 - Paragens Mais Remotas Que Estas Terras

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14 - E Não Se Pode Exterminá-lo?

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13 - Woyzeck

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12 - Música Para Si

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11 - Auto da Família

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10 - Casimiro e Carolina

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9 - O Treino do Campeão Antes da Corrida

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8 - Alta Áustria

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7 - Tambores na Noite

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6 - As Músicas Mágicas

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5 - Ah Q

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4 - Pequenos Burgueses

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3 - O Terror e a Miséria no III Reich

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2 - A Ilha dos Escravos e A Herança

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1 - O Misantropo

118 - 4 AD HOC

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  fotografias de Luís Santos ©

  

4 AD HOC

deEugène Labiche

 

Tradução Luís Lima Barretoe Luis Miguel Cintra com colaboração de Cristina Reis

Encenação Luis MiguelCintra

Cenário e figurinos Cristina Reis

Desenho de luz Cristina Reis,Luís Miguel Cintra e Rui Seabra

Direcção musical João Paulo Santos

Assistente de encenação eContra-regra Manuel Romano

Assistentes para o cenário efigurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos

Director técnicoJorge Esteves

Construção e montagem de cenárioJoão Paulo Araújo e Abel Duarte

Montagem e Operação de luz e somRui Seabra

Guarda-roupa, costureira econservação do Guarda-roupa Maria do Sameiro Vilela

Assistente de ProduçãoTânia Trigueiros

Secretária da CompanhiaAmália Barriga

Cartaz Cristina Reis

 

Pianista Nuno Lopes

 

1.

AESCOLHA DE UM GENRO

“Pochade”em um actode Eugène Labiche e Alfred Delacour

Representada pela primeira vez emParis, no Teatro Le Vaudeville, a 22 de Abril de 1869

 

Personagens

FRANCISCO (François), criado deEmílio Luis Miguel Cintra

BARRILARO (Bidonneau)Luís Lima Barrreto

EMÍLIO (Émile), o conde deMontemilhão (Montemillion) Dinis Gomes

MANDOLINA, artista líricaSofia Marques

 

2.

DOISREFINADOS MALANDROS

“Pochade”deVarin e Eugène Labiche

Representado em Paris no teatro doPalais-Royal em 24 de Fevereiro de 1854

 

Personagens

ASSENTE (Poncastor), perfumista Dinarte Branco

FREMENTE (Frétillard), professor delínguas RicardoAibéo

SANHUDO (Farouchon), carcereiro José ManuelMendes

 

Intervalo

 

3.

AVIAGEM

“Pochade” em um actode Eugène Labiche

Representada pela primeira vez emParis, no Teatro Le Vaudeville, no dia 1 de Dezembro de 1868

 

Personagens

ERNESTO DE MAXENTUDO (Ernest deMaxenville) Ricardo Aibéo

SAIOTE (Godais), gerente de hotelLuís Lima Barreto

AUGUSTO (Auguste), empregado dohotel Dinis Gomes

MARIA (Marie) Sofia Marques

 

4.

ADAMA COM AS PERNAS CÔR DE MAR

“Pochade” em um actode Marc-Michel e Eugène Labiche

Representada pela primeira vez emParis, no Teatro do Palais Royal, no dia 11 de Abril de 1857

 

Personagense actores da estreia

ARNAL: Papagallo, presidente doConselho dos 10 Luis Miguel Cintra

RAVEL: Um Cabo Dinarte Branco

GRASSOT: O Doge de VenezaRicardo Aibéo

JACINTO: Begalo-bengalini, duque de Ferrara, depoispagem Hyacinthe Luís Lima Barreto

ZÉ AMANTE: Afonso de Este, duque de Ferrara Dinis Gomes

UM MAQUINISTA:Lacroix Manuel Romano

Mme ALINE DUVAL: Catarina, filha doDoge Sofia Marques

A SENHORA CARAPÊTO (Chatchignard):Thierret José Manuel Mendes

 

Música:

 

Igor Stravinsky: Tango (1940); Valse pour les enfants (1917); CircusPolka (1942)

As canções são contrafacções e adaptações de:

Jacques Offenbach:La Jolie Parfumeuse, Tromb-al-Cazar, Vert-Vert, La Belle Hélène

Hervé: Mam’zelle Nitouche

Charles Lecocq:Le Petit Duc

 

Agradecemosà Marisa Fernandes e ao Duarte Cunha pela “colaboração” dos cachorros Lautrec eLili

 

 

16 de Novembro a 15 de Dezembro - Teatro do Bairro Alto, Lisboa

25 representações 

M/12 

            

ESTE ESPECTÁCULO

 

A realidade começa porque oautor não quer que se sintam no teatro mas no meio da rua e não quer portantofazer poesia, ritmo, literatura, quer dar uma pequena lição aos vossoscorações, para isso é poeta.

 

Federico Garcia Lorca, Comedia sin Título

 

 

A complicação, que sempre degenera em equívoco,começa logo no título que dei ao espectáculo: 4 AD HOC. Na minha cabeça,como no uso mais banal da expressão latina, 4 ad hoc era, pensava eu,quase como dizer 4 à toa, aleatoriamente. 4 quê? Só aí ficava algumacoisa por dizer: 4 peças de teatro, por exemplo. Ou 4 amigos, ou 4 seguidas, ou4 filhos, ou os 5 que eram personagens crianças de uma série de aventuras paraas crianças do meu tempo e que afinal eram 4 + 1 cão. Isso seria para cada umpreencher e enganar-se, querendo eu fazer graça com os títulos que damos aosficheiros que pomos nos computadores e que às vezes se perdem como aquele quenão guardei e incompreensivelmente não consegui recuperar e que continha otexto que antecedeu este. Mas afinal, ao que me dizem, 4 AD HOC nãopassa pela cabeça de mais ninguém senão pela minha que pudesse ser o nome de umficheiro de computador. AD HOC éuma expressão latina cuja traduçãoliteral é "para isto" ou "para esta finalidade". Segundo a wikipédia que substitui não sódicionários e enciclopédias como livros de investigação e quase a bibliotecatoda, poupando imenso espaço (não é que um dia uma escritora me disse,orgulhosa, (mas mentia, aposto) que não tinha livros em casa a não ser talvez 4(ad hoc?), só tinha digital, e é verdade que assim cada vez mais se vaipoupando imenso tempo, felizmente, para esbanjar. AD HOC afinalquer dizer o contrário do que eu pensava. E 4 é um algarismo (aí não há dúvidanenhuma), e um número (cuidado, não é a mesma coisa) que comecei por não meatrever a não explicar num subtítulo que existia no guião inicial e entretantosumiu: “4 “pochadesde Eugène Labiche com vários colaboradores”.Já viram isto? Faço mas desfaço. E já não tem cura.

 

Sumiu porquê? Por um lado porque outra almacaridosa e com mais sentido prático achou que era inútil um subtítulo paraexplicar mas que de facto só complicava, porque “pochade” é uma palavrafrancesa que nem as pessoas que sabem muito francês têm a certeza do que querdizer, e de qualquer forma só os velhos portugueses é que ainda falam francês,o resto é tudo inglês e espanhol. E também porque não cabia no espaço docartaz, pré-concebido sem mais essas letras. Até os melhores atinge a força dohábito. Ou é a verdade que vem sempre ao de cima, porque de qualquer maneiradizer “e outros colaboradores” não acrescenta informação, retira importância aosenhor Labiche porque só conta que não escreveu sozinho. Concordei, triste porme ter enganado e afinal ser tão inábil.

 

Mas “pochade” vem de “poche”: algibeira (e nãobolso). Devia ter escrito: 4 algibeiradas de Labiche, Delacour, Varin eMarc-Michel? Teria sido melhor. E há a expressão “piadas de bolso” e havia “oslivros de bolso”. E há mesmo uma entrada no facebook que se chama “Maisde 160 piadas de bolso”. Copio e colo e com as 3 primeiras percebem logo doque estou a falar:

 

Um maluco entra num café.

- Senhor empregado, uma limonada com uma rodelade limão, por favor.

 Oempregado leva-lhe a limonada num grande copo e a rodela de limão num pires deporcelana. O maluco mergulha a rodela de limão na limonada antes de a beber.Depois come o pires de porcelana.

 - Senhorempregado, traga-me a mesma coisa novamente.

O empregado leva-lhe novamente a limonada numgrande copo e a rodela de limão num pires de porcelana. O maluco mergulhanovamente a rodela de limão dentro da limonada antes de a beber e come o piresde porcelana. No momento de pagar diz ao empregado

- Sabe, a vossa limonada é excelente, mas, e semofensa, as vossas sanduíches são intragáveis

 

Outra

 

É o dia de aniversário do João. Faz doze anos.

- Esta noite - disse-lhe a mãe -, tu irás ter umenorme bolo com doze velas.

- Que bom, mamã. Mas eu preferia doze enormesbolos com uma só vela.

 

E outra

 

Um maluco entra num asiloagarrado por dois enfermeiros. Mal entrou no asilo, exclamou, aliviado, para osenfermeiros:

- Ufff! Lá fora é um mundode doidos!

 

É o costume, anedotas semgraça nenhuma, ou melhor, sem alegria. Uma visão desencantada e desencantadorado real. É como as 4 do nosso título.

 

As 4 AD HOC são 4 curtas (mas para ostempos que correm não serão já longas?) peças de teatro de um autor francês dasegunda metade do século XIX, por sinal membro da Academia, que escreveu ummontão delas, peças ligeiras, neste caso quatro anedotas, escritas para osactores que as interpretariam e para o dia seguinte, em cima da hora, quecaricaturam a realidade imediata da vida burguesa, e revelam o seu absurdo, oabsurdo de uma sociedade que vive como um mecanismo de que todos conhecem tãobem as regras que já ninguém as vê. São sobretudo retratos de seres humanos,uns tantos, à toa, mas podiam ser outros. O que não são com certeza é tipos. Ascaricaturas aliás nunca podem ser de tipos. Exageram exactamente o que não é oestereótipo. Aliás um actor que se preze transforma qualquer tipo em pessoa. Eum mau actor transforma qualquer personagem em estereótipo. E o título do nossoespectáculo é também uma espécie de brincadeira sobre o absurdo da própriaactividade teatral nos dias que correm. Toda ela à toa, tudo vale e não valenada, tudo ad hoc. Na maior parte dos casos a correr, em cima do joelho.

 

Este espectáculo é 4 dessaspeças que escolhemos ad hoc. São piadas de algibeira. Ou nas algibeirasestão as perguntas (de algibeira) e nos bolsos é que estão as piadas (aspochades)? Julguei que só havia perguntas de algibeira. É verdade: e napeça A Escolha de um Genro, não era na algibeira do senhor Conde Emílioque o senhor Francisco Trucadinho se queria meter para o estudar?

 

4 anedotas para rir. E revejo-meno Canta e Ri-se ou a Canção dos Lagos do E Não se PodeExterminá-lo: “É que não tem mesmo graça nenhuma…ha,ha,ha”.  Mas nesta confusão em que a minha cabeçaestá, quem consegue pôr os outros a rir? E se me falam em bolso, eu do que melembro é de uma pedra no bolso, que é um filme muito bonito em queentrei há muitos anos, ou então vejo-te a ti, uma pessoa sonhada a passear e aassobiar de mãos nos bolsos. Mas isto não é coisa tirada dos versos de MárioDionísio, e não se fala de meu velho camarada? Ou a palavra era amigo? Mas oque sonhei não era em Montevideo? Terra “vintage” do filme Transatlânticoe Romântico da Christine Laurent? Tolices. O que vejo é “uma paisagem de areia reflectida num espelhoembaciado”.

 

De facto só me interessa o“teatro debaixo da areia”, como o Garcia Lorca lhe chamou na peça que se chama OPúblico em que ele torna justamente o que de mais privado tem em matéria adusum publicum. Só me interessa o teatro que diz o que normalmente (deacordo com a norma) não tem interesse público e no entanto só no públicoencontro razão para teatrar. E tenho bradado há 40 anos que o trabalho quefazemos é de interesse público. Mas afinal em que é que acredito? Quem me salvadesta angústia? O padre Tolentino?

 

As cabeças dos outros tambémserão assim? Este circo de argumentos, imagens, recordações, ideias adoque, àtoa, à rasca? Mas quem são os outros? E as cabeças dos actores serão iguais àsdas outras pessoas? São eles os únicos egoístas? E são todos iguais? Seremos? Aque propósito falaremos agora do que somos? É verdade, boa ideia: toca adiscutir este assunto: somos todos iguais ou todos diferentes? Diferentes? Têma certeza? Ou todos cães de Pavlov?

 

E a propósito de algibeira é da Tabacariado Fernando Pessoa que me lembro, do Esteves sem metafísica:

 

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco naalgibeira das calças?).

 

E logo também:

 

(Se eu casasse com a filha da minhalavadeira/Talvez fosse feliz.)

 

Pior: se eu tivesse casado …Que aos sessenta e 4já é tarde para casar. Mas sabem uma coisa? Falar de poesia foi a única coisaque me soube bem desde o início deste texto. Digo: a poesia e sinto-me em casa.Já sei porquê: porque nem à poesia nem à música alguém pede que se explique. Porenquanto…sim, porque a pintura já não escapa, está presa em mais explicação quetinta.

 

No fundo, verdade verdadinha é que estas 4 algibeiradasnem me interessam a mim nem com certeza a mais ninguém. Com tantos prós econtras, tanta palhaçada de tv, e tanto mezzo e tanta vida falhada, queinteressa o casamento com um conde que traz uma actriz por conta com a filha deum pobre comerciante de Paris no fim do século XIX? Ou os “delitos de amor”, ouseja, as idas ao bordel, de dois anónimos, o Assente e o Fremente, etc. Sãoanedotas antigas, convencionais na sua sobranceria em relação ao casamento,falam de uma realidade que degenerou em abstracção no “teatro de Boulevard”.Que ainda, com Feydeau, se tornou de facto em máquina perfeita de alegriafictícia. Ou de puro movimento, e que Joe Orton, com uma juventude que o amortornou eterna, já que o amante o matou, voltou a resgatar como quem tira domais imundo lixo do quotidiano mais banal, o oiro de uma gargalhada juvenil. Um“boulevard” que com as migalhas que continuaram a cair dessa mesa ainda deu decomer, e de que maneira! ao nobel Dario Fo. E até à Cornucópia que com o querendeu o “Não se Paga! Não Se Paga!” pagou ao Estado o que devia e conseguiuvoltar a ter existência legalizada. Sim, mas serei injusto se não reconhecerque em Labiche o boulevard ainda quer ser caricatura. Neste caso são quatro anedotas, que caricaturam a realidade imediata davida burguesa, e revelam o seu absurdo, o absurdo de uma sociedade que vivecomo um mecanismo de que todos conhecem tão bem as regras que já ninguém as vê.Labiche tem sempre um momento em que nos podia fazer assomar uma lagrimita aocanto do olho, quando reconhecemos a infelicidade que o absurdo abafou, ou ocoração de um ridículo, ou situações que são tanto de toda a gente que a gentetambém as reconhece porque por elas passou. São ainda retratos de sereshumanos, uns tantos, à toa, mas podiam ser outros. Só que são olhados com olhosde ver, e olhos de quem está de fora e solidário, com pena de não poder estarlá.

 

Janelas do meu quarto,

 Do meu quarto de um dos milhões do mundo queninguém sabe quem é

 (E se soubessem quem é, o que saberiam?),

 Dais para o mistério de uma rua cruzadaconstantemente por gente,

 Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

 Real, impossivelmente real, certa,desconhecidamente certa,

 Com o mistério das coisas por baixo das pedrase dos seres,

 Com a morte a pôr humidade nas paredes ecabelos brancos nos homens,

 Com o Destino a conduzir a carroça de tudopela estrada de nada.

 

E o que me interessanestes textos, e para mim é nisso que está o interesse de continuar a fazê-losé justamente a consciência da distância que vai da minha janela à Tabacaria emfrente.

 

O quê? Falar outra vez denós próprios? Mais discurso autofágico? É possível. Mas se quando fizemos OPúblico de Garcia Lorca, por exemplo, era a alegria de um ofício como onosso que estávamos a pôr em cena, agora essa alegria transformou-se emmelancolia ou lucidez. Também Labiche, no seu amor pelo real concreto, aindaque com uma displicência de que não somos capazes, na sua tão estranha ADama com as Pernas Cor de Mar, a pochade que escolhemos para quefosse a última, se inclui no retrato, põe em cena as próprias pessoas doteatro. E com que crueldade!

 

É essa última peça, dir-se-ia que tão malescrita, ou tão moderna, das menos conhecidas e publicadas do autor que paramim estrutura todo o espectáculo. Percebam por favor que apesar de tudo hárazões para estarmos sempre a pensar na relação, ou falta de relação, do quefazemos num teatro com o que se passa na “terra e no mar” e nas ruas dascidades. Vendo há dias o filme que o Ricardo Aibéo realizou sobre a nossaCompanhia e a que chamou A ILHA, a propósito da ilha de Próspero de ATempestade de Shakespeare, voltou o assunto à minha cabeça, ao sentir quechamar à Cornucópia A Ilha, coisa já frequente e que o Ricardo continua,se adoptava o ponto de vista da personagem Caliban quando nessa peça a certaaltura diz esta obra-prima:

 

Benot afeard; the isle is full of noises,

Soundsand sweet airs, that give delight and hurt not.

Sometimesa thousand twangling instruments

Willhum about mine ears, and sometime voices

That,if I then had waked after long sleep,

Willmake me sleep again: and then, in dreaming,

Theclouds methought would open and show riches

Readyto drop upon me that, when I waked,

I cried to dream again

 

O teatro é um lugar de sonhos, de acordo. Masesses sonhos não sei se encantam e não nos magoam. É o lugar da consciência. Enuma ética de amor ao real de que não abdico e que resulta em fé, me provoca amais contraditória das sensações, como ao poeta da Tabacaria olhar aporta da loja em frente. Fartei-me de dizer pela vida fora que fazendo teatrovivia mais que os outros. A Ilha é o lugar de delight que o mundolá fora não pode ser, sim, mas é também o lugar onde se fabrica uma realidade,uma carne, artificialmente criada e que nos alimenta e esconde o nada de tudo.Esse tudo que seria afinal apenas uma vida insignificante para a ambição dos nossosegos, ou demasiado absurdo para quem só se conforta com um sentido para a vida.Mas a vida talvez seja mesmo terrivelmente absurda.

 

Serei sempre o que nãonasceu para isso;

Serei sempre só o quetinha qualidades;

Serei sempre o queesperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,

E cantou a cantiga doInfinito numa capoeira,

E ouviu a voz de Deus numpoço tapado.

Crer em mim? Não, nem emnada.

Derrame-me a Naturezasobre a cabeça ardente

O seu sol, a sua chuva, ovento que me acha o cabelo,

E o resto que venha sevier, ou tiver que vir, ou não venha.

 

É verdade, é este o tema que me leva a Labiche: aquestão da relação com o real. Justamente por serem peças que tão habilmentemanipulam a sua ilusão, por mais que se tenha perdido muito o que, no diaseguinte a terem sido escritos, ainda seria mesmo fotográfico. Agora a relaçãocom a vida real, como se costuma dizer, perdeu-se. Quase completamente. Masficou ainda o retrato da relação dos homens uns com os outros, ficou ointeresse da contracena, do viver em sociedade e isso sim bem me interessa. Eficou um retrato da alienação. Tudo gente que não se vê ao espelho, que não seidentifica com o discurso que tem. A vida? Um enorme acaso, mas é o que há, eviver, sabe-se lá porquê, afinal é divertido.

No belo pequeno vaudeville que é Dois refinadosmalandros, para que o João Paulo Santos arranjou tão acertada músicarepescando números de velhas operetas, quando aqueles dois palhaços tãoexistenciais como os de Beckett ou tão simpáticos como o Bucha e Estica,manipulados por aquele guarda de prisão que é o Don Alfonso deste petit “cosí”cozinhado na ausência das mulheres, se vão despedir, está isto, estedesconchavo de que falo, quando no fim da estadia naquela prisão as personagensse dizem:

 

-Mas se não fui preso por razões amorosas, porque diabo me meteram na cadeia?

-Agora já sei! Foi por causa da sua água para osolhos! O senhor não é dentista?

-Uma água excelente!... Que injustiça!

-É verdade! Eu usei-a…. Muito boa para os calos!

- E agora, Fremente? (rindo-se)

- E agora Assente?(rindo-se)

- É assim. Acabou-se. Já não temos nada a ver umcom o outro!

- Não é por isso que deixamos de ser bons amigos,não é?

- Espero bem… senão eu era capaz de ter pena.

- Também eu, porque no fundo, a gente até sedivertiu.

 

Vladimir e Estragon. Tão à espera de Godotcomo os outros. De que estão a falar? Falamos sobre quê no teatro? Mas no fundoisso que interessa? Do teatro que fiz só me lembro de coisas sem sentido. E quevivo com os outros. O resto esqueceu. E que peças interessam a quem? Ou, paraser ainda mais claro, que peças me interessam a mim? Já que nestas celebraçõesdos 40 anos de vida teatral estamos numa de “perdido por cem perdido por mil”vou confessar-vos: a mim não me interessam as peças, por mais terrível que sejadizê-lo, interessa a vida que elas me permitem criar ou que tenho a ilusão decriar: a minha relação de trabalho com a Cristina, o que sinto (e que não queronem por nada nomear, não me vá aparecer o fantasma da palavra “poder”) pelosactores…

 

Depois de termos induzidoos espectadores a saber ler em tantas soluções de cenários e espaços umalinguagem de tipo simbólico, aqui, e a cavalo no Labiche, vamos mais longe quenunca. Fazemos quatro peças diferentes dentro de um cenário sem sentido paraqualquer uma delas. Seja literal, seja metaforicamente. O que é este cenário? Oque são estas distâncias? Citações de citações. É uma paisagem estranha. É umsonho? Pobres palavras, que conseguem dizer? É um retrato das nossas cabeças. Élá que opera a consciência, no meio das confusões grandes ou pequenas que aoprincípio e pateticamente comecei por descrever. E não é assim que vivemos? Eno fundo, a gente até se divertiu.

 

O que é isto? Afinal oque é este espectáculo? Para mim é como uma glosa do poema sem par de FernandoPessoa que acaba assim:

 

Visto isto, levanto-me dacadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria(metendo troco na algibeira das calças?).

Ah, conheço-o; é oEsteves sem metafísica.

(O Dono da Tabacariachegou à porta.)

Como por um instintodivino o Esteves voltou-se e viu-me.

Acenou-me adeus,gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo

Reconstruiu-se-me semideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

 

Mas começa por

 

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer sernada.

À parte isso, tenho emmim todos os sonhos do mundo.

 

Pois é. Bem queríamos serpoetas.

 

(Come chocolates,pequena;

Come chocolates!

Olha que não há maismetafísica no mundo senão chocolates.

Olha que as religiõestodas não ensinam mais que a confeitaria.

Come, pequena suja, come!

Pudesse eu comerchocolates com a mesma verdade com que comes!

Mas eu penso e, ao tiraro papel de prata, que é de folha de estanho,

Deito tudo para o chão,como tenho deitado a vida.)

 

E que me dizem a esta boutade?Melhor que 4 pochades ad hoc.

 

Luis Miguel Cintra

 

 

 

IMPRENSA

Canela e Hortelã

Destak

Correio da Manhã

 

 

 

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