19 - Dou-che-lo Vivo, Dou-che-lo Morto
fotografias de Guilherme Silva DOU-CHE-LO VIVO, DOU-CHE-LO MORTO Comédia em 4 partes e um entremês Texto estabelecido por Eduarda Dionísio e Antonino Solmer Textos de Luís Vaz de Camões, Garcia de Orta, Pedro Nunes, S. Tomás de Aquino, Michael Geddes, Manuel Severim de Faria, Fernão Mendes Pinto, Frei Heitor Pinto, Gervásio Lobato, Cipriano Jardim, Latino Coelho, António dos Mártires Lopes e ainda, textos anónimos (História Trágico-Marítima) e documentos oficiais do sec. XVI, carta de um missionário jesuíta a Santo Inácio de Loyola, relato de um feiticeiro, texto da tradição oral da tribo Pende, textos extraídos da imprensa dos sécs. XIX e XX. Encenação Antonino Solmer Dramaturgia e assistência de encenação Eduarda Dionísio Espaço, roupas e objectos Antonino Solmer, Eduarda Dionísio e Luis Miguel Cintra Montagem Fernando Correia, José Pedro Gomes e Linda Gomes Teixeira Electricista César Silva Montagem sonora José Luís Direcção de cena José Pedro Gomes Recolhas sonoras dança guerreira de Taza-Marrocos; reza em Pali, lndia; Genjoraku – A dança das Serpentes, Japão; demonstração dos ritmos de mridanga, India; canto de um condutor de bois, India; Hino em louvor do deus Siva, India; cantos de crianças, India; sons de mercados de Lisboa e do Norte de África e Música popular portuguesa Composições de Manuel Mendes, Ligetti, Haendel, Adrian Willaert, Rão Kiao e Francisco Martins. Interpretação Herói Luis Miguel Cintra Actores-maquinistas Francisco Costa, Gilberto Gonçalves, José Manuel Mendes, José Pedro Gomes e Márcia Breia Colaboração de Allessandra Bálsamo, Augusto Sobral, Centro Cultural das Caldas da Rainha, Francisco Manuel Bruno Soares, Francisco Solano, Grupo 4, Joana Sousa, José Huertas Lobo, Maria de Lourdes Freitas Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia 19/05/81 12 representações Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura este espectáculo “A parte do sagrado da vida humana é enorme, muito maior do que as pessoas se apercebem. Nas brincadeiras das crianças, o sagrado está quase sempre presente, mas parece que os homens o vulgarizaram de tal forma que perderam em definitivo essa forma de sabedoria infantil. Não, também aí é possível prever que os homens retomem o sagrado, na sua expressão mais profunda, a de algo que os liga entre si.” Marguerite Yourcenar Antes tinha ficado uma memória com objectos. Agora insurgimo-nos contra ela. Este espectáculo é uma anti-memória desta “história” ou desta memória nacional, que nunca teve, como aqui, estes objectos como personagens históricos. Mas as linhas, os processos e os objectivos são os mesmos. Diferente porque os elementos estruturais unificadores são aqui o espaço e os objectos. E não existem referências privilegiadas a não ser talvez, a primeira sinopse de imagens. Porque a primeira. A que se lhe seguem outras. A lógica é a da suposição. De um Herói longínquo duma época de hagiografias onde ao equilíbrio, à harmonia e à calma procurados, prevalecem o insólito, o excesso, o angustioso. Um espectáculo de Herói. Prorrogar a sua existência através de personagens outros que o conduzam, ligando textos e imagens, criando cenas. São estas que criam as regras de um percurso. A primeira e quase a única é-nos dada pelos elementos constantes do confito: descobertas-alegria-desastre. E a força que é preciso ter para depois de um desastre recomeçar a descoberta. O ímpeto da criança, o apagar constante da memória nos objectos idênticos, a sua transfiguração, a brincadeira. E sempre isto, até ao fim. Até ao último desastre. Jogo infantil de uma coisa séria. E o nosso jogo, a nossa regra: não tecnocratização do teatro. Sim ao encontro de seres vivos, à magia do actor, transformando o teatro em algo de grande e extraordinário. Desmistificando a sua memória e os seus objectos, desde o teatro ilustrativo (um enorme flash em câmara mais ou menos lenta. As pessoas trazem quando saiem, uma fotografia retocada nas retinas) até aos últimos marketings do teatro moderno. Um exercício de escrita. dou-che-lo vivo dou-che-lo morto, é um jogo do séc. XVI que descobrimos referido por diversos autores, mas que nunca descobrimos na sua descrição completa. Sabemos apenas que consistiria na passagem de mão em mão, de um pau de uma tocha ou vela. Religioso? Profano? Decerto lúcido. Referido nos escritos do autor que nos sustém os textos, é-o metaforicamente. Suposto, lúcido, metafórico o título do nosso espectáculo. Está o texto tratado nestes escritos. Da perspectiva da encenação resta vincar o desafio que lançamos ao considerar qualquer texto como um elemento dramático, desta vez “construído” no interior do trabalho, o que veio aumentar as nossas potencialidades: textos cuja inclusão-função se deve mais à carga-memória que transportam do que àquilo que “dizem” (a palavra Joanne, o prolongamento da Carta de Perdão como missa na nau para a Índia), ou pelo contrário, ou por tudo isso (cartas de correio-cartas de jogar). Os actores não representam o texto mas servem-se dele como de qualquer objecto para a acção que lhe está subjacente. Textos que nada tendo a ver com o Herói passaram necessáriamente pelo seu conhecimento. Textos-paisagem ou textos-cenografia (História da Princesa, Colóquios dos Simples e das Drogas). Textos que pela sua colocação, dialogam com outros mais adiante, ou já passados, feitos textos-personagens. “O texto é um personagem multifacetado que se mostra ao longo de vários períodos. O personagem total do livro constrói-se pelo equilíbrio esquemático dos personagens periódicos e cada um destes, podendo ser distintos perfazem ao anterior as características do seguinte. Em teatro, uma marcação deste tipo, evidencia o carácter lúdico do esquema, denunciando no espectáculo-jogo de cada cena a encenação do espectáculo todo”. (a propósito de memória com objectos espectáculo estreado em 25 de Abril de 1980, na Sala Manuela Porto, produção de “Os Cómicos”) Colocado o texto a este nível falemos dos seus complementares mecânicos. Ou seja, das funções “condensadoras” que apontámos ao texto, também produzidas pelos ou-tros elementos num todo que procuramos orgânico: pelos sons (a sonoplastia-paisa-gem, gravada ou produzida pelos actores como os risos em silêncio ou repentinamente sonoros produzindo mudanças de cena, de cenário), pelos objectos, ou outros, manejados ou não pelos actores, pelas intenções até (é uma laranja que justapõe o Herói na cena sobreposta dos Colóquios, são as galinhas que fazem de damas onde elas não existem, é a tinta vermelha que assinala um ferimento, etc.) Um exercício de escrita e um exercício de leitura. Neste espectáculo de Herói é a este que pertence o conflito. Objectos, luzes, sons, pessoas que o circulam alegram-no e hostilizam-no a necessidades da história cíclica. Todos maquinistas ou engenhos, peças ou jogadores do objectivo que é esta história-suposição. Para isso se servem do que estiver à mão: de um outro, de um texto, de um piar de pássaro, de um par de botas, do silêncio, da sala inteira. Aos actores fica a maior ou menor lógica dos seus instintos profissionais e humanos e a batuta de uma estranha linguagem de que mais ou menos se apropriaram. Dia após dia, nos seus fatos de trabalho de Teatro da Cornucópia, a maior ou menor inteligência, a maior ou menor disponibilidade que manobre improvisos, coisas mecanizadas e outras coisas assim, deste mistério renovado. Assim entendemos este teatro - lugar de provocação, de desafio que o actor lança a si próprio e indirectamente, aos outros. Quanto ao entremez não é obra de encenador. Um àparte (que a este é devido?) quando ele tem medo ou corre o risco de ser acusado por falta de provas concretas. Sem dúvidas, o exorcismo torna-se mais fácil. Um teatro de sala inteira, envolvente, de contacto com o público. Onde não se representem habilidades por si só nem puros tecnicismos (para isso lá está o arremedo de palco do entremez), necessita de um espaço conforme. Conforme as concepções geométricas do mundo, das esferas, dos círculos, com centros ou espaços privilegiados, talvez apenas gizados, e linhas e riscos e amontoados, talvez acordados, desconcertados. Um espaço conforme e disforme que inclua o vazio de ensaio, de um improvisado , talvez experimental. Lá está o operador, também, actor-sentado no seu trono de aparelhos e Rei com caneleiras de hóquei, as vozes de fora, os bastidores. Os objectos que o teatro já possuía. Os objectos mais-ou-menos-assim. Condensando funções, fazendo de conta com mobilidade. Os objectos-brinquedo para um espectáculo portátil. E o brinquedo que é o som gravado, tão autêntico, como o texto, pintando cenários, sublinhando gestos, glosando figuras, (aquem escreveu “um tom de voz horrendo e grosso, dando um espantoso e grande brado, com voz pesada e amara, cum medonho choro” chegar-lhe-ia a sua própria voz amplificada electrónicamente, como hoje podemos fazer, para lhe “arripiar as carnes e os cabelos”?), fazendo gestos (o som gravado do sino liberta o actor de o continuar a tocar assim como os “pássaros” produzidos pelos actores libertam a fita magnética). E o brinquedo que pode ser uma máquina do mundo composta de projectores do teatro, o claro Olho do Céu que é a luz do aquecimento e as outras luzes de fogo: memórias de épocas, efeitos solenes, aquecimentos, queimas, milagres. Alumiando tudo isto e mais alguém. Público ou personagem? Um exercício de escrita e de leitura. Um ensaio. O Teatro da Cornucópia, única Companhia que neste momento se pode reivindicar de tradição e estofo nacional com provas, não possui meios de produção que lhe permitam montar um espectáculo paralelo ao que está em cena, sem atrazos nem atropelos. Um exercício de escrita e de leitura. Um ensaio. E um exercício de produção. E de paciência Antonino Solmer sobre o texto A proposta inicial era estabelecer um texto que servisse de suporte a um espectáculo onde se visse viver uma personagem cuja construção se faria a partir da biografia (im)possível de Camões. O que se fez foi uma colagem. Só possível porque a margem de desconhecido era suficientemente larga e fértil; porque os textos tinham à partida uma diversidade e uma riqueza onde a contradição está sempre presente; porque havia disposição e disponibilidade bastante para ler e reler textos duma maneira diferente daquela com que tinham sido lidos anteriormente; porque a vida de quem escreveu esses textos parecia interessante. Também o forte risco possibilitou um trabalho assim. E o sentimento de que “as circunstâncias o exigiam”. Os resultados inesperados têm provavelmente pouco que ver com as expectativas iniciais. É um tipo de trabalho que se poderia realizar com alguns outros autores. Pareceu-nos no entanto que, neste momento e nesta terra, seria mais importante fazê-lo com Camões do que com qualquer outro escritor. 1. Pressupostos literários – Algumas evidências A construção do texto parte de alguns pressupostos que normalmente nos esquecemos de aplicar a Camões - ou porque nos esquecemos de Camões, deixando-o entregue a outros, ou porque fazemos o mesmo que os outros fazem quando nos preocupamos com ele. - Viver e escrever são coisas diferentes, não por devermos evidentemente separar “realidade” de “ficção”, mas porque se trata de duas realidades com regras diferentes. É inútil procurar “referências biográficas” nos textos de Camões, mesmo que estas existam. Dizer que se ama é diferente de amar (ou o oposto); dizer que se sofre, diferente de sofrer (ou o oposto); dizer que se morre, que se está a morrer diferente de morrer e de estar morto (ou o oposto). - Escrever faz parte do viver, não é um parênteses na vida, durante o qual se trans-creve ou se inventa o que se viveu antes. É uma actividade prática, parte do quotidiano de quem escreve. Vive-se enquanto se escreve, não se vive antes para se escrever depois. Pode acontecer até que se vivam depois situações semelhantes às que se inventavam escrevendo uma antes. - O que se vive e o como se vive determina o que se escreve e o como se escreve - o que sabe, o que quer, o que lhe interessa, o que percebe. Indirectamente. É mais um mito dizer, como alguns, que se Camões não tivesse escrito Os Lusíadas outro o teria escrito por ele, necessariamente. - O que se escreve existe. As regras da escrita fabricam uma realidade, a partir duma prática individual e colectiva. O que se inventa passa a existir com uma dimensão física e como modo de comunicação. Por outro lado, existia já, noutras formas, em que se escreve. “Mme Bovary c'est moi” tem que ver com isto e podemos dizer que de certo modo Camões é o Adamastor, o Velho do Restelo, Júpiter, Baco, Vasco da Gama, o Jesus Cristo de certas Elegias, tanto ou mais do que o eu da lírica. - O que se escreve é determinado pelos esquemas dominantes da produção literária. Ou seja a relação com os referentes, as funções e as marcas da escrita variam de época para época conforme as características da produção literária dessa época. Coisas como o regime de mecenato, por um lado, e a existência de formas fixas de certo modo obrigatórias e de modelos codi-ficados, por outro, determinam o que se escreve e o seu significado. Os géneros criam sentidos próprios, mais próximos ou mais distantes do viver. Morrer não quer dizer o mesmo nos Lusíadas e na lírica. A existência do soneto por exemplo faz escrever, sentir e viver de outra maneira. A leitura dos sonetos tem que contar com as obrigatoriedades e as repetições. A dife-rença está noutros lados. Ficamos assim autorizados a “construir uma personagem” a partir de textos literários, recusando qualquer perspectiva auto-biográfica na abordagem desses textos, rejeitando inclusivamente qualquer ordenação cronológica, qualquer interpretação “literal” até, não privilegiando sequer a utilização de textos líricos para “exprimir sentimentos”, e explorando a possibilidade de “identificação” entre autor e certas personagens. 2. O material disponível, o “corpus”, as escolhas. À nossa disposição: Toda a obra atribuída a Camões, toda a literatura conhecida produzida na sua época, ou lida na sua época, ou que à sua época de algum modo se refere. Com esta incerteza: o que é que Camões escreveu? – o que nos chegou com o seu nome? – o que nos chegou sem nome? - o que nos chegou com nomes outros? E ainda: o que é que leu? Com mais esta suspeita: Camões é um escritor sem obra. Dizendo de outro modo: escreveu tudo o que se escreveu no século XVI, excepto algumas coisas. Com mais esta dificuldade: as regras diferentes dos textos à nossa disposição - textos literários que começaram por não o ser (cartas, relatos, obras didáticas), textos que não foram nem são (ainda?) literários (documentos oficiais), textos literários (uns narrativos outros líricos). E o que ficou: Textos de Camões (redondi-lhas, elegias, sonetos, éclogas, sextinas, canções, cartas e Os Lusíadas) de Fernão Mendes Pinto, de Garcia de Orta, de Pedro Nunes, de Frei Heitor Pinto, anónimos (História Trágico-Marítima); documentos oficiais (Cartas de Perdão, Alvará, atribuindo a tença, Autorização para publicação dos Lusíadas) - todos contemporâneos de Camões. Textos anteriores ou posteriores ou sem data a S. Tomás de Aquino, sobre a Inquisição e os ultramares. Com esta convicção: outras selecções serviriam igualmente a proposta inicial. Não se trata aqui de fazer uma antologia de Camões e de autores do século XVI, mas de construir um texto cuja lógica interna nunca existirá por si, mas que depende do espectáculo. A lógica do texto só se encontrará na relação texto-espectáculo. Não é um texto para teatro no sentido tradicional, prévio à encenação. É um texto construído com, para, por e durante um trabalho de encenação, cuja feitura acabou ao mesmo tempo do que ela. É, pois, um texto “de encomenda” condicionado (o que não significa limitado) pelo projecto do espectáculo, pela sua estrutura (o itinerário, do nascimento à morte, duma personagem, como se de um “Auto da Paixão” ou duma “Comédia dum Martírio” se tratasse), pelo tempo do espectáculo (que em princípio não poderia exceder 3 horas), pelos tempos do espectáculo (regulados pelas 4 partes e os 23 quadros que o constituem), pelas características de qualquer espectáculo (textos para serem ditos, representados, ouvidos, e não lidos, nem sequer “declamados”). Um texto que serve um espectáculo. Entre os primeiros critérios de escolha: a maior facilidade dos textos, por um lado, e por outro, a maior multiplicidade de leituras que podem oferecer imediatamente. 3. Características do texto desta comédia. Regras de funcionamento. O texto funciona metaforicamente, dentro das regras do como se. Não descreve, mas sugere obriga a associações e a transposições. Afasta-‑se aqui deliberadamente qualquer realismo se por “realismo” entendermos a tentativa de transcrição do que se vê e do que se diz com a fidelidade possível. O texto não reconstitui nem restitui um referente, remete para ele enquanto o constrói. Assim, são as outras funções da linguagem que não a referencial que determinam em parte a sua escolha. (a apelativa, a fática, a emotiva, a metalinguística, a poética), que determinam em parte a sua escolha. Os textos nunca querem dizer o que é dito neles do ponto de vista denotativo. A conversão dos textos em textos dramáticos parte dessas outras funções, e do tipo de enunciado do texto (descrição, relato, diá-logo, etc. ... ), da sua sintaxe (exclamações, interrogações, enumerações, etc. ... ) mais do que do seu vocabulário, na convicção de que é possível representar (no sentido teatral do termo) as funções da linguagem e as várias sintaxes. Manteve-se a língua original sem actualizações. Esta língua com esta fonética desviada, este léxico, este nível indubitávelmente literário, é uma componente do espectáculo. E essa língua não é exactamente o português, mas o Camões. É uma língua com um som próprio. Os discursos de outros autores serão um pouco línguas estran-geiras da mesma família, espécies de galego, de castelhano, de leonês, de catalão ... Houve a preocupação de que os que a ela estão habituados, já lhe tendo perdido muitas vezes os sentidos, recuperassem a sua real estranheza e de que se tornasse familiar para os que a ela eram estranhos. Assim se cria um código específico, que será necessário desvendar e descobrir ao longo do espectáculo, onde Ásia pode querer dizer Europa; assento pode querer dizer cidade, ou Lisboa, ou sítio a que se chega; Escorbuto pode querer dizer peste; Joane (nome masculino) pode significar qualquer coisa como mulher . A chave do código linguístico será dada pelas situações. Os textos não valem por serem “citações” de Camões, mas surgem como discursos que dentro duma lógica que não a da “realidade” poderiam ser ditos como falas, perdendo numa primeira fase a literariedade e ganhando, também pelo tom (que diverge sempre do tom da convenção camoniana), as características de uma qualquer outra língua corrente. A personagem LC fala sempre “Camões”. E o texto será simultaneamente uma memória, que pode estar dentro da personagem mesmo antes de existir (como um monólogo interior difuso ou simplesmente uma língua materna) e um produto que se vê fazer, que passa a existir, como literário até, no momento em que é dito. E assim pode acontecer que o discurso de LC toque outros discursos, todos eles românticos: o de Rousseau de Emílio, o de Julien Sorel do Vermelho e Negro, o de Simão Botelho do Amor de Perdição, o de Paul (et Virginie), talvez. Porque não? As outras personagens falam “Camões” quando o discurso de LC o permite, falam línguas outras com funções outras: caracterizar personagens, definir relações, fornecer dados sobre as situações. As outras personagens estão, assim, umas vezes no registo de LC e outras vezes num registo mais próximo da verosimilhança. Fabricarão de algum modo “tipos”, o que não pode acontecer com LC que é “único” e toda a gente. 4. A Organização e o tratamento do texto da comédia É antes de mais um conjunto de textos de géneros vários, com estruturas diferentes, com estilos que não se ajustam, cuja justaposição é determinada pelos quadros previstos que, alinhados, dão origem a qualquer coisa a que se pode dar o nome de “comédia” - que na concepção clássica não implica sempre o cómico, mas sim a presença de “pessoas privadas” e até de “classe humilde” - cuja linha condutora é o itinerário duma personagem durante o qual foi fazendo descobertas e aprendizagens e adquirindo fórmulas de vida, sentimentos e saberes no confronto permanente entre o inato e o adquirido. Certos textos são sem dúvida privilegiados em relação a outros (uma outra dimensão, uma outra estrutura) por corresponderem a pontos altos desse itinerário de descoberta e de sobrevivência. Poder-se-ia dizer que o texto se auto-construiu, com o espectáculo. As operações-base feitas sobre o material disponível e seleccionado foram por um lado o seu encadear (segundo regras de continuidade e ruptura; de cruzamento, de repetição e de sobreposição) de forma a que os textos pudessem dialogar entre si, assumindo a diversidade e a contradição dentro dum princípio de unidade; por outro lado, a transformação e o desdobramento em falas criando personagens capazes de suporta-rem a função de emissor das várias mensagens e sugerindo relações entre elas de vário tipo: o que sabe e o que não sabe; o que ensina e o que aprende; o de uma classe e o de outra classe; o que já viveu e o que ainda não viveu; o que viveu umas coisas e o que viveu outras; o que domina e o que é dominado; o que tem poder e o que pretende tê-lo; o que ama e o que é amado; o que sofre e o que faz sofrer; o mais velho e o mais novo; o mais rico e o mais pobre; o que está dentro do grupo e o que está de fora; o que ordena e o que obedece; o que faz o espectáculo e o que assiste ao espectáculo, etc., etc. ... Estas duas operações provocam necessariamente uma distanciação em relação ao texto e uma grande familiaridade com ele (que não chegará a ser “desrespeito”) pois é-lhe reconhecida autoridade ao mesmo tempo que ela é posta em causa, e se permitem coisas como estas: que partes do discurso grandiloquente do Adamastor possa ser proferido por “populares”; que os discursos amorosos de Camões possam ter como destinatários galinhas, que a narrativa da “Ilha dos Amores” possa ser transformada num texto programático de LC encenador; que as perguntas-respostas de sonetos filosóficos resultem num jogo de corte; que a descrição da tromba marítima seja uma tirada teatral de LC actor. Mas para que isto se tornasse possível, foi necessário cortar textos, cruzar textos (de Camões, de Camões e outros), repetir textos (com o mesmo sentido, com outros sentidos, citações e memórias), sobrepor textos e até reconstruí-los, reescrevendo-os com as mesmas palavras. Ou seja: em parte destruir discursos que têm muito de monumental. Isto, com a preocupação de conservar nesta montagem as características próprias da expressão escrita e oral de uma época, por serem formas de comunicar e de viver que fazem parte das personagens, por serem fórmulas adquiridas e interiorizadas e portadoras de sentido: os diálogos didáticos ou morais (tipo Corte na Aldeia), as cartas, as profecias (tipo Nostradamus), os relatos (tipo histórias de cordel), os documentos oficiais, as rezas, os jogos, os teatros. 5. A lógica do entremês Um entremês é ainda espectáculo. Introduz-se no meio duma “Comédia”, mas é-lhe estranha. Tem, neste caso, outras fontes, outra linguagem, outra organização. Os textos aqui são quase todos nossos contemporâneos (séc. XIX e XX) ou então há os do século XVI, lidos pela tradição cultural e oficial dos séculos XIX-XX. Trata-se, nesta parte, do espectáculo de desmontar, como parte da realidade “Camões” e realidade da nossa cultura e da nossa época os discursos vários a que Camões tem dado origem, a esses discursos, servir de pretexto, elementos há nele que o permitem. Não há acasos nem milagres. Tenta-se, na própria confrontação do discurso oficial e do discurso do quotidiano, repertoriar, analisar e criticar essas várias retóricas: o discurso escolar, o discurso publicitário, o discurso de propaganda, o discurso jornalístico, o discurso oratório, o discurso dramático. Ao contrário dos textos da “comédia”, os textos do “entremês”, têm a sua função referencial valorizada. Conta-se com aquilo que é dito. Aparecem para possibilitar uma parte do espectáculo que pode ser um instrumento de análise e crítica, de relativização, de definição dum ponto de vista, de intervenção mais directa e explícita, mais imediata do que a do restante texto. Um traço comum entre os dois textos: a sua apropriação pelo espectador está dependente de outros elementos do espectáculo e dos próprios espectadores, das referências que estes transportam em si as diferentes imagens, leituras, viveres, saberes, preconceitos, ideologias, disponibilidades. É um texto que se quer tão controverso quanto diverso e onde o propósito de mostrar, divulgar e vulgarizar os próprios textos também entrou. Eduarda Dionísio
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