73 - Afabulação
fotografias de Paulo Cintra, Laura Castro Caldas e Cristina Reis AFABULAÇÃO Pier Paolo Pasolini Les causes sont peut-être inutiles aux effets De Sade Tradução Maria Jorge Figueiredo Encenação Luis Miguel Cintra Cenário e figurinos Cristina Reis Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos Director de montagem Jorge Esteves Desenho de luzes Daniel Worm d' Assumpção Montagem eléctrica Pedro Marques Operação de luz Pedro Marques Montagem João Paulo Araújo e Abel Fernandes Contra-regra Rui Pragana Guarda-roupa Emília Lima Costureiras Julieta Carvalho, Maria Bamdas, Piedade Duarte e Teresa Cavaca Conservação do Guarda-Roupa Alice Madeira Colaboração Pedro Gardete e Luis Lopes Cartaz Cristina Reis Secretária da Companhia Amália Barriga Interpretação Sombra de Sófocles José Manuel Mendes Pai Luis Miguel Cintra Mãe Rita Loureiro Filho António Pedro Cerdeira Rapariga Rita Durão Nigromante Glicínia Quartin Padre, Comissário, Médico, Ferroviário Luis Lucas Mendigo e Espírito do Filho no Epilogo António Pedro Cerdeira Música no fim do espectáculo ouve-se um recitativo da Penélope do Il Ritorno d'Ulisse in Patria de Claudio Monteverdi, interpretado por Norma Lerer na gravação dirigida por Nikolaus Harnoncourt com o Concentus Musicus Wien para a Teldec (Das Alte Werk). Colaboração de Doutor Emílio Salgueiro, Sérgio Niza, Jean-Claude Biette, Professor Kanna, Paulo Cardoso, Ricardo Aibéo, Jorge Lima Barreto, Pablo Llorca, Maria do Carmo Vasconcelos, Carmen Santos e Jorge Sequem, Ana Costa Almeida, Área Museológica da CP, Fundação Caloute Gulbenkian - Serviço ACARTE. Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 04/11/1999 34 representações Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura Apoio de RDP, Antena 1 ESTE ESPECTÁCULO Vidas ejemplares. Era uma colecção de livrinhos que o meu pai me ia regularmente oferecendo. Trazia de Espanha, das suas viagens, e eu era um menino, talvez ainda agarrado aos seus joelhos. Muitos santos. Gente rara. O melhor era São Francisco, o mesmo de Rossellini, o mesmo de Ucellacci e uccellini. E os mártires todos, com sangue a escorrer. Desde então precisei sempre de exemplos. De santos. Do exemplo de vidas políticas. Voltadas para os outros e voltadas para Deus. A nós, menos grandes, e sobretudo já passada a idade de crescer, são quem nos defende do Mal, do cinismo. E nos deixam o desejo. Ainda vontade de conhecer. São Pier Paolo faz agora parte da minha colecção. Afabulação fala sobretudo de conhecer, ou seja, tocar, ver e sentir sem dominar. Cria horror ao poder. Pensa com leis poéticas, felizmente inúteis. Põe outra vez em cena o Édipo antigo mas no lugar da Esfinge põe diante dele a própria vida, em vez de um enigma um mistério. O próprio futuro. Foi para falarmos desta generosidade fundamental ou desta humildade (ser pequeno diante do Homem, filho de Deus) que quis pôr em cena este texto. Porque é difícil para "uma sociedade num péssimo momento da sua história". E porque quero também perguntar: que faremos perante um filho "anacronicamente inocente" que não nos quer matar? Perante o seu corpo? Na passagem das gerações, falemos sobre pais e filhos. Falemos como se fala no teatro, com o corpo, como na vida. Falemos. Este é um teatro que se quis escandalosamente da palavra. Austero. E palavroso. Sem medida. Um pequeno teatro enorme. Público, político, como o corpo terá de ser. O teatro dá-nos na cidade ainda esse espaço. Só que o espaço do teatro na cidade não é o espaço da cidade. Existe cidade? Nas nossas democracias o escândalo é difícil. Quem toca quem? Todos livres de não ser tocados. Tu pensas o que pensas que queres, eu penso o que penso que quero. A cidade funciona sem pensar. E cada vez menos pensamos o que queremos. E cada vez mais pensamos o mesmo. E não queremos. Como se usufrui da liberdade dos outros? Como reconheceremos o corpo de cada um? Este teatro, nenhum teatro, será já escandaloso. Este espectáculo terá por isso de ser infecundo, humilde, é talvez um "oásis de esquecida dor". É feito por amor aos novos a quem talvez possa ou talvez não possa interessar. Não sei. Diz-se para aí obscenamente que esta é a época do corpo. Que corpo? Filho, deixa-me ver o teu corpo. Onde estão ainda os corpos? O corpo de cada um? Este texto fala também do corpo, mas de um corpo escandalosamente sexuado. Este espectáculo gostava de ser, como o texto, apenas isto: um discurso púdico, dolorosamente solitário, sobre o corpo, contra a grande solidão. "...perdendo o sentimento/a parte racional". "...mas dentro n'alma o fim do pensamento por tão sublime causa me dezia que era razão ser a razão vencida. Assi que, quando a via ser perdida, a mesma perdição a restaurava; e em mansa paz estava cada um com seu contrário num sujeito. Oh, grão concerto este! Quem será que não julgue por celeste a causa donde vem tamanho efeito, que faz num coração que venha o apetite a ser razão? Aqui senti de Amor a mor fineza, como foi ver sentir o insensível, e o ver a mim de mim mesmo perder-me. Enfim, senti negar-se a natureza;" Como diz Camões numa Canção. Luis Miguel Cintra
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