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CRONOLOGIA

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118 - 4 AD HOC

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117 - AI AMOR SEM PÉS NEM CABEÇA

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116c - O NOME DE DEUS - O ESTADO DO BOSQUE

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116b - O NOME DE DEUS - Leitura DUAS CARTAS

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116a - O NOME DE DEUS - Leitura GENNARIELLO

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115 - Os Desastres do Amor

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114 - O SONHO DA RAZÃO

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113 - FINGIDO E VERDADEIRO

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112 - A Varanda

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111 - "ELA"

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110 - Morte de Judas

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109 - A Cacatua Verde

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108 - Fim de Citação

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107 - DANÇA DA MORTE / DANÇA DE LA MUERTE

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106 - Olá e Adeusinho

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105 - MISERERE

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104 - A Cidade

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103 - Ifigénia na Táurida

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102 - Menina Else

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101 - A Tempestade

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100 - Os Gigantes da Montanha

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99a - Leôncio e Lena

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99 - Don Carlos, Infante de Espanha

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98 - A Floresta

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97 - O Construtor Solness

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96 - A Tragédia de Júlio César

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95 - Filoctetes

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94 - Ensaios para "O Ginjal"

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93 - A Gaivota

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92 - Sangue no Pescoço do Gato

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91 - A Cadeira

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90 - Um Homem é um Homem

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89 - Esopaida

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88 - A Família Schroffenstein

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87 - Filodemo

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86 - Anatomia Tito Fall of Rome

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85 - Tito Andrónico

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84 - A Vida é Sonho

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83 - Tiestes

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82 - História do Soldado

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81 - O Colar

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80 - O Novo Menoza ou A História do Príncipe Tandi

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79 - Dom João e Fausto

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78 - A Morte de Empédocles

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77 - Hamlet

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76 - The English Cat

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75 - Cimbelino

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74 - AMOR/ENGANOS

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73 - Afabulação

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72 - A Sombra de Mart

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71 - Trilogia Monocromática

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70 - O Casamento de Fígaro

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69 - O Lírio

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68 - Quando Passarem Cinco Anos

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67 - Um Sonho

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66 - Máquina Hamlet

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65 - Sertório

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64 - Os Sete Infantes

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63 - Demónios

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62 - A List

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61 - Barba Azul

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60 - A Margem da Alegria

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59 - Dor

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58 - Um Auto de Gil Vicente

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57 - Splendid's

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56 - A Prisão

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55 - Vai Ver Se Chove

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54 - O Dia de Marte

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53 - O Triunfo do Inverno

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52 - O Jogo das Perguntas

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51 - O Conto de Inverno

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50 - Diálogos Sobre a Pintura na Cidade de Roma

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49 - A Mula, O Clérigo, O Alfaiate e Mais Lamentações

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48 - Sete Portas

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47 - Primavera Negra

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46 - Apanhados no Divã

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45 - Mauser

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44a - Antes que a Noite Venha

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44 - A Missão

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43 - Até Que Como O Quê Quase

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42 - Comédia de Rubena

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41 - Muito Barulho Por Nada

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40a - Façade e The Bear

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40 - Um Poeta Afinado

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39 - Salada

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38 - Céu de Papel

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37 - O Público

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36 - Vida e Morte de Bamba

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35 - Auto da Feira

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34 - Três Irmãs

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33 - Grande Paz

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32 - Vermelhos, Negros e Ignorantes e As Pessoas das Latas de Conserva

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31 - A Mulher do Campo

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30 - A Sonata dos Espectros

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29 - Pai

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28 - A Ilha dos Mortos e Páscoa

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27 - Ricardo III

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26 - O Parque

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25 - Simpatia

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24 - A Missão

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23 - Novas Perspectivas

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22 - Mariana Espera Casamento

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21 - Oratória

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20 - O Labirinto de Creta

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19 - Dou-che-lo Vivo, Dou-che-lo Morto

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18 - Não Se Paga! Não Se Paga!

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17 - Capitão Schelle, Capitão Eçço

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16 - Zuca, Truca, Bazaruca e Artur

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15 - Paragens Mais Remotas Que Estas Terras

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14 - E Não Se Pode Exterminá-lo?

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13 - Woyzeck

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12 - Música Para Si

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11 - Auto da Família

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10 - Casimiro e Carolina

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9 - O Treino do Campeão Antes da Corrida

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8 - Alta Áustria

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7 - Tambores na Noite

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6 - As Músicas Mágicas

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5 - Ah Q

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4 - Pequenos Burgueses

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3 - O Terror e a Miséria no III Reich

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2 - A Ilha dos Escravos e A Herança

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1 - O Misantropo

105 - MISERERE

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imagem do cartaz, desenhos e fotografias de Cristina Reis ©

 

MISERERE
(o Auto da Alma, o salmo Miserere Mei e trechos do Auto da Lusitânia, do Breve Sumário da História de Deus e da Carta a D. João III sobre o tremor de terra de 1531de Gil Vicente)

 

Colagem de textos e Encenação Luis Miguel Cintra

Cenário e figurinos Cristina Reis

Desenho de luz Daniel Worm D’Assumpção

Assistente de encenação e contra regra Manuel Romano

Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos 

Acompanhamento vocal Luís Madureira

Director técnico Jorge Esteves

Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo, Abel Fernando com Tomás Caldeira

Edição de som Hugo Reis

Montagem e operação de luz Rui Seabra

Guarda-roupa Maria do Sameiro Vilela

Costureira Teresa Balbi

Secretária da Companhia Amália Barriga 

 

Elenco

Dinis Gomes, Duarte Guimarães, João Grosso, José Airosa, José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Ricardo Aibéo, Rita Blanco, Sofia Marques e Vítor de Andrade

 

Um homem muito triste José Airosa

Um homem muito firme nas suas convicções João Grosso

Dois brincalhões mais e menos cínicos Ricardo Aibéo e Dinis Gomes

Um homem muito humilde Luis Lima Barreto

Um homem muito senhor de si José Manuel Mendes

Um homem meigo Vítor d’Andrade

Um malandro Duarte Guimarães

Uma mulher, vigilante Sofia Marques

A Alma Rita Blanco

Ajudante de cena com máscara Luis Miguel Cintra

 

FICHA TÉCNICA TNDMII

Direcção de cena Pedro Leite

Apoio à operação de som Sérgio Henriques

Apoio à operação de luz Luís Lopes

Maquinaria Paulo Brito

Auxiliar de camarim Raquel Belli

 

Trechos musicais utilizados no espectáculo

 

1. Mozart, Ave Verum Corpus K.618, Arnold Schoenberg Chor, Concentus Musicus Wien, Nikolaus Harnoncourt, TELDEC.

2. Eric Ramos, Vexilla regis prodeunt, Postlude in A Minor, Postlude 1 e 2, Crux fidelis, Domine Jesu Christe, (recolhido no YouTube), Phoenix, Arizona, USA

3. Juan de Anchieta, Salve Sancta Facies, Odhecaton, dir Paolo Da Col, San Vitale, Festival de Ravenna 2009 (recolhido no YouTube)

4. Pavarotti e Zucchero, Miserere

Concerto no Royal Albert Hall, Londres, Novembro de 2006 (recolhido no YouTube 772 419 visualizações em 19-03-2006)

 

Agradecemos a colaboração de Eric Ramos que, com total generosidade, prescindiu dos direitos das suas interpretações e da autoria de Portlude in A Minor.
 

Lisboa: Teatro Nacional D. Maria II, Sala Garrett. 15/04 a 23/05/2010

28 representações

 

Co-produção do Teatro Nacional D. Maria II/Teatro da Cornucópia

Estrutura financiada pelo Ministério da Cultura/Direcção Geral das Artes

 

ESTE ESPECTÁCULO

Foi como resposta a um convite do Teatro Nacional D. Maria II para encenar um texto clássico português que nasceu este espectáculo. Mas, não querendo trair o que adivinhámos ser o desejo de cumprir uma das funções consensuais da programação de um teatro nacional, a apresentação de textos da dramaturgia portuguesa, resolvemos acrescentar-lhe o que também podia ser desejo da companhia co-produtora do espectáculo, o Teatro da Cornucópia, com quem também foi desejo do teatro nacional colaborar: tratando-se de um espectáculo para um teatro nacional, contribuir de alguma maneira para uma intervenção cultural que a apresentação num teatro nacional tem possibilidade de levar mais longe que a apresentação na pequena sala de uma companhia considerada “especialista” em textos clássicos. Quisemos, cumprindo funções oficiais, corrigir uma injustiça, a do esquecimento nos últimos anos de um dos mais belos textos clássicos portugueses por demasiado “religioso”, mas quisemos também fazê-lo apostando numa encenação, isto é, numa sua leitura, nada consensual, polémica, arriscada, reivindicando para o Teatro Nacional uma vontade de intervenção artística que não seja a mera apresentação dos clássicos com a função de conservação do património dramático, e passe pela possibilidade de o tornar num lugar de criação contemporânea portuguesa. Julgo que um Teatro Nacional tem o dever de produzir progresso cultural, e que pode e deve possibilitar a provocação intelectual do seu público heterogéneo, composto em princípio por cidadãos responsáveis pelo seu próprio pensamento.

 

Tenho muitas vezes definido o meu trabalho de encenador como o trabalho de um intérprete mais que o de um criador. No actual momento da prática teatral portuguesa julgo que me devo trair. Digo com isto que, perante a cada vez maior “normalização” da actividade e o êxito da sua progressiva integração numa “normalizada” prática cultural, previsível, prevista e comandada pelas regras do mercado, julgo que é altura de os artistas de teatro não se deixarem tornar em meros utensílios para a fabricação de produtos culturais normalizados quer pelas regras de financiamento do estado , quer pelo gosto médio do público, e de retomarem o que os define como artistas: inventar, romper as regras, surpreender, chocar. Nunca pensei que a actividade de um intérprete não pudesse ser criadora, e toda a vida a entendi assim, mas os tempos não estão para subtilezas. É melhor estremar os campos. Que nunca foi tão fácil comer gato por lebre. Eu, como encenador de um texto alheio, estou também a querer dizer qualquer coisa.

 

Mas de certa forma foi ainda como intérprete, e acompanhado por um grupo de amigos colaboradores artistas e cúmplices de uma vontade de “criar”, que abordei de uma forma que quis tão livre e pessoal este texto de Gil Vicente: o Auto da Alma. É a própria natureza dos textos de Vicente que no-lo exige. Este é o 6º texto seu que levamos à cena e sempre sentimos tratar-se de um material poético extremamente livre, porque incompleto: oferece espaço à invenção. Pede um espectáculo. E tão circunstancial e efémero como o teatro que Vicente praticou. Em poucos autores da História do Teatro se sente tanto como em Gil Vicente quanto um texto teatral é, por natureza, o guião para um espectáculo, mais que apenas um texto literário, e que o seu sentido só se completa quando é actualizado em função da circunstância e do lugar onde é representado. Gil Vicente trabalhava para a corte e escrevia peças para serem representadas uma única vez em ocasiões concretas, festas profanas, festas religiosas e muitas vezes em honra de pessoas concretas, chegando mesmo a introduzi-las no espectáculo, representadas por figuras da ficção dramática. Na 1ª edição das suas obras, a Compilação de 1562, publicada já depois da sua morte, ainda se lembram as circunstâncias para que cada uma delas foi escrita.

 

O Auto da Alma é um desses casos. Foi escrito por encomenda da Rainha Dona Leonor para ser apresentado no paço na noite de Endoenças, ou seja, na Semana Santa de 1518. E a obra corresponde à encomenda: é uma obra de temática puramente religiosa, centrada sobre a ideia cristã da redenção da culpa dos homens pelo sacrifício de Cristo na cruz, e enxertada até de hinos litúrgicos próprios dessas cerimónias. Através de figuras exclusivamente simbólicas, dramatiza-se um percurso espiritual: o do reconhecimento pela Alma humana, atribulado pela tentação do mal, da sua condição de pecadora até à sua aceitação da Igreja como lugar da redenção e de garantia do seu regresso à pureza original, através da celebração da paixão e morte de Cristo, e mais concretamente, da Eucaristia. O Auto é quase uma glosa das cerimónias da Semana Santa para as quais foi escrita. A sua qualidade literária é imensa, alguns dos seus versos são dos mais belos versos escritos em língua Portuguesa e é provavelmente aí que reside a sua resistência ao tempo e o que nele continua a atrair-nos. Retirá-lo do seu contexto religioso e, 400 anos depois, representá-lo num palco em contexto profano é uma violência e um risco.

 

Foi esse risco que julgámos valia a pena correr. E, num contexto profano, arrancando-o da igreja para o teatro e para uma época de cultura tão pouco espiritual, o que nos surge à primeira abordagem é o texto de um processo de culpabilização de grande violência. É um texto denso que, para quem for alheio à ideia de bem e mal inerente ao Cristianismo, parecerá castrador do direito agora consensual, mesmo que apenas teoricamente, de cada um viver a sua vida da maneira que quiser desde que não perturbe a vida de mais ninguém. Neste espectáculo foi nesse ponto de vista que nos quisemos colocar. E o palco de um teatro nacional republicano e democrático assim nos convidava a fazer.

 

É um dado essencial para a sua compreensão o reconhecimento das suas personagens como figuras simbólicas. A personagem central que dá nome ao Auto (a Alma) não é uma pessoa, é uma ideia. Não são seres humanos quem Vicente quer pôr em cena, são símbolos ou alegorias: o Diabo, o Anjo Custódio, a Santa Madre Igreja e os seus vários Doutores, detentores de um discurso ideológico. Mas, perdida essa consciência, o que verão em cena aqueles para quem já não tiver valor esse discurso, são pessoas que, ao longo da peça, e sempre inseridas nesse contexto moral, com sentido positivo ou negativo, “torturam” a protagonista, lhe anulam a personalidade, lhe impedem outro desejo que não seja o de anular o corpo em que, pelo menos em vida, está contida. Foi a essa imagem que nos colámos neste espectáculo. Demos literalmente corpo a essa hipótese. Despimos o auto da imagética religiosa, transformámos todas as figuras em pessoas, demos corpo humano à metáfora literária de que o autor se serve. Gil Vicente representou a Alma como uma caminheira, uma mulher ingénua e sempre cansada da viagem da vida, que aceita ser recolhida e “restaurada” numa pousada onde a estalajadeira é a Igreja. A própria metáfora, com a sua passagem para cima das tábuas, rebenta pelas costuras. A Alma em cena é uma mulher, uma actriz. E as tentações que lhe fazem, ao contrário dos discursos que lhe dirigem, são físicas, sensoriais. Ora uma Alma, nesta filosofia religiosa não tem corpo. E é justamente o martírio do corpo a que aqui a Alma é sujeita. Como aconteceu a Cristo, e tão simbolicamente como com Ele, para voltar, depois da morte, à essência original, ao Verbo. Só que o teatro faz-se com o corpo. E em vez de o ignorar, como é costume acontecer, aqui quisemos expor o feliz contra-senso. Para nós a Alma tornou-se numa mulher ingénua, sem noção do bem e do mal, fechada num lugar (a ideologia cristã da Igreja Católica), e rodeada por outros homens que lhe vão ensinando doutrina, que lhe retiram a alegria, a fazem sofrer, e a obrigam a uma imitação do caminho de Cristo para a cruz como forma de fugir a uma condenação, a uma culpa de que não é responsável. Obrigam-na a renunciar ao seu corpo, no fundo ao seu desejo, a tudo o que seja prazer dos sentidos,  para se entregar a um sacrifício de si própria. No espectáculo deixámos ficar essa Alma como mulher e inventámos diferentes seres humanos por quem redistribuímos o restante texto que em Gil Vicente está dividido por essas figuras da imagética cristã. Ficámos com uma sala de tortura, talvez uma tenebrosa clínica para doentes mentais. O que, para os que têm em si integrada a fé Cristã, ou apenas a tradição cultural, pode ser chocante e tornar-se assustador, mas talvez nos possa pôr a olhar com outros olhos para um tipo de discurso, ou uma tradição cultural, que já nem questionamos e que integrou a culpa como grande parte da nossa consciência.

 

Recuso-me, pessoalmente, a reconhecer o Cristianismo nesta negra representação da consciência Cristã. E não entendo como particularmente Cristão nem Vicentino falar da “triste carreira desta vida” como a personagem de Santo Agostinho faz na abertura deste auto. Julgo que em Gil Vicente isso corresponde mais à satisfação da encomenda de um espectáculo capaz de se integrar nas cerimónias da Semana Santa daquele tempo que à sua verdadeira visão do Cristianismo, muito mais livre e assente na ideia de alegria e no perdão, na aceitação da própria condição humana como coisa imperfeita  destinada à perfeição. Senti-me por isso tentado a enquadrar o Auto com textos de sentido contrário que retirei de outras obras de Vicente:

- a glosa do salmo bíblico Miserere mei Deus, todo ele invocador da misericórdia divina,

- a Carta a D. João III em que lhe conta como tentou convencer os frades de Santarém de que o terramoto que ali se tinha sentido não era castigo de Deus mas coisa natural num mundo feito de energias contraditórias que não são necessariamente bem e mal,

- alguns trechos do Auto da Lusitânia, como o episódio de Todo o Mundo e Ninguém onde com algum humor trata os vícios e virtudes da condição humana,

- e sobretudo a belíssima fala do Anjo ao Mundo e ao Tempo no Breve Sumário da História de Deus, em que explicitamente se diz que a condição Divina é indissociável do perdão, e a condição humana da alegria de viver. Mas também da consciência da morte, indissociável da ideia de vida.

 

Não nego que é com particular satisfação que na boca de uma figura exterior ao Auto da Alma mas que coloquei em cena de negro e cara tapada como os ajudantes de cena convencionalmente invisíveis do Teatro Nô japonês, me é dado dizer no fim do espectáculo:

 

Adão é deitado de sua alegria

porque por seu mal nam pôde c'o bem

que Deos lhe queria.                                                   

 

E porém com tudo piadoso tornado

manda-te Mundo agasalhar a Adão

e todos aqueles que procederão

de sua semente de qualquer estado.

E lhes dês folgança                                                     

 

e todalas cousas em muita abastança:

os peixes que vão per carreiras do mar

as aves que andam as vias do ar

ovelhas e bois e toda avondança

os leixa lograr.                                                           

 

Porque ainda que são pecadores

nam tem outro padre senam o senhor

que nam quer a morte ao pecador

mas antes que viva e lhe dê louvores.

 

É um espectáculo gémeo de um que fizemos em 1983 (há 27 anos!) com semelhantes inquietações e um processo dramático parecido, a que chamámos Oratória, de que talvez alguns dos mais velhos se lembrem, e em que, curiosamente, já incluíamos trechos da paráfrase vicentina do Salmo e da fala do Anjo do Breve Sumário. Sintoma de que a inquietação, a busca de um sentido para a vida, permanece intacta. Dissemos nessa altura: “Mas afinal qual é a ferida? Ferida dupla: ferida, primeiro, dos nossos credos: em que coisas ainda acreditamos? Que nos faz ainda viver? Ferida, depois, do nosso trabalho, dos nossos processos, da própria actividade teatral.” É sobretudo a primeira ferida a que permanece. Mas com menos auto-compaixão e mais humor, ou se quiserem, outra crueldade. E outra piedade. Outro irmão próximo, mais recente, o Sangue no Pescoço do Gato de Fassbinder, há 5 anos, estará mais perto deste. E, como neste, confrontava uma inocente com um grupo também preso de maneiras de pensar que não questiona. Os três são obras nossas de “devaçam”, como na Compilação das obras de Gil Vicente se diz do teatro de temática religiosa.

 

Espero que este espectáculo de 2010, menos secreto e pessoal, guardando dos outros e dos anos que vão passando mais que a técnica de os construir, sobretudo o que eles nos deram que pensar, espectáculo a que acabei por chamar MISERERE, lembrando todos os Misereres da história da música, e citando o primeiro verso do salmo em latim, opere alguma distanciação do texto original através da estranheza que poderá provocar a aplicação de um discurso que já não ouvimos porque, tal como previsto, não o conseguirmos dissociar da imagética religiosa (anjos, demónios, santos, etc), a outra imagem metafórica da condição humana, uma em que nos esquecemos do fundamento da divisão que herdámos entre bem e mal e já só a associamos a discursos contraditórios de repressão e tortura psicológicas, imagem de um evidente vazio moral. Até Gil Vicente muito discretamente brincou com a sua própria metáfora de “refeição” utilizada até à exaustão gastronómica para nomear o conforto moral da Igreja: as “iguarias”, “cozinhadas” com perfeição são os cravos da cruz, os açoites, a coroa de espinhos, a própria cruz, sinais de tortura e de uma efectiva condenação à morte.

 

Não é por esta des-sacralização do auto que deixámos de o encenar como simbólico, ou que o deixámos de considerar como auto religioso, “obra de devaçam”.  E alguns sinais quisemos deixar da tradição cristã, aqui revisitada. O troço de quadro gigantesco que sobre aquela sala pende (por sinal, reprodução de um fragmento de um Fra Angelico, calculem!), é sinal da História e símbolo de alguma insuspeitada super-estrutura religiosa que pesa sobre os (ou dentro das consciências dos) seres humanos dos países civilizados. Há 20 séculos que a Igreja trabalha integrada na evolução da História… E tratando-se de tornar este grupo de personagens simbólicas em representantes modernos da condição humana, resolvemos vesti-los como se todos usassem farda, representando quanto o que nos nossos dias a função social “sói” esconder cada pessoa. Deixámos em cena e tentámos tratar objectivamente, para que os víssemos melhor, os símbolos da paixão e morte de Cristo noutra convenção cénica: ( a verónica, os açoites, a coroa de espinhos, os pregos, e o madeiro da cruz). E também da música pedida por Vicente, (os hinos religiosos: Salve sancta facies, Ave corona espinearum, Dulce lignum dulcis clavus, Domine Jesu Christe, Te Deum laudamus) quisemos deixar algum rasto mais significativo que o da mera e óbvia adopção de alguma interpretação de canto polifónico. A música que inserimos é sinal do nosso tempo: encontrei-a no youtube cantada e tocada no harmónio de uma igreja de Phoenix, Arizona (como o mundo é agora pequeno!!) por Eric Ramos, um rapaz de 20 e poucos anos que, na sua simples exposição pública, me comoveu mais que qualquer vedeta da música antiga, e que ao meu contacto respondeu: “Yes, it is fine with me that you use my music. Everything is public domain except the postlude in A Minor but you may use that also. What is the play about?”.  (rara generosidade, não é?) A Cristina resolveu deixá-lo representado em estátua de tamanho natural diante do nosso cenário. Mas outros sinais simbólicos e contraditórios, como abertura e epílogo, sentimos necessidade de acrescentar: à laia de abertura o Ave Verum Corpus de Mozart, uma das peças de música sacra com que melhor se identifica a minha formação religiosa musical, e como epílogo, uma das expressões mais populares, chocantes e comoventes da profanação do mundo contemporâneo, tocada e cantada no Royal Albert Hall tornado em Estádio.  E se a inclusão da cantiga paralelística que pertence ao Auto da Lusitânia, mas banalizada aqui pela inocência da nossa Alma, tem a função de através dessa pequena obra-prima de lírica tradicional portuguesa, introduzir no texto do espectáculo a temática sexual ausente do texto do Auto, a inclusão da glosa do Salmo ( conservando também a versão em latim que na Compilaçam acompanha o texto de Vicente) foi um espaço que quisemos deixar em aberto para a maior ou menor sinceridade religiosa que resultaria desta operação. A nossa interpretação e o choque entre o que dela surgir e a profanação em cena da iconografia cristã (a última ceia, o ecce homo, o jogo aos dados da túnica de Cristo, a via crucis ), de alguma forma hão-de pôr em cheque a nossa fé. Como Armando Silva Carvalho diz num texto admirável com que o Teatro Nacional S. João fez acompanhar o seu Breve Sumário da História de Deus, espectáculo com que este nosso acaba por dialogar, “o ateísmo é uma purificação”. Ou como no outro belíssimo texto que também acompanha o mesmo espectáculo, o Padre Tolentino de Mendonça diz, a propósito da obra de Pasolini: “Talvez só um modo de contar profano nos possa dar de novo a emoção e a experiência íntima e recôndita do próprio sagrado.” Também foi para mim importante a tão inteligente análise do Auto que M.S.Lourenço faz no seu artigo O Homem como Planta no Auto da Alma de Gil Vicente, que ousa falar da Graça, conceito esquecido, e que acaba assim: “A alma está presa no mundo da Geração e nunca chega a despertar para a vida eterna.” Tudo boa gente que se interroga. Não, o Auto da Alma não é apenas uma obra do repertório. Fala do caminho da nossa vida. É ainda para alguns  uma provocação. Novo título lhe demos, Miserere, e uma pergunta lhe pusemos como epígrafe, os primeiros versos do salmo de Vicente, ao que parece inspirados em versões peninsulares de outra glosa escrita na prisão por alguém que por razões de fé morreu queimado: o Savonarola de Florença:

 

Que farei angustiado

onde caminho perdido

onde vou descaminhado

pecador desatinado

homem embalde nacido?

 

Luis Miguel Cintra

 

IMPRENSA

Expresso

tvnet 

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