61 - Barba Azul
fotografias de Paulo Cintra e Laura Castro Caldas BARBA-AZUL de Jean-Claude Biette Tradução Luis Miguel Cintra Encenação Christine Laurent Cenário e figurinos Cristina Reis Desenho de luzes Daniel Worm d' Assumpção Assistente de encenação Rita Durão Direcção técnica Luís Mouro Assistente de cenografia e guarda-roupa Linda Gomes Teixeira Montagem Manuel Vitória com Manuel Gamito, António Vitorino, Serralharia Leonel & Bicho, Lda. e Femando Correia com Alexandre Freitas Montagem Eléctrica e operação de luzes Pedro Marques com Rui Simão Banda sonora Vasco Pimentel Selecção musical Paulo Galvão Guarda-roupa Emília Lima Costureiras Aline Sêco, Antónia Costa, Delfina Silva, Piedade Duarte e Teresa Cavaca Contra-regra e fabricação de adereços Alfredo Martinho, Abraão Tavares e Sónia Matos Postiços Casa Victor Manuel Colaboração Paulo Vieira Cartaz Cristina Reis Interpretação (por ordem de entrada) Narradora/Ama Glicínia Quartin Escritor Luis Lima Barreto A Mãe Maria d' Aires O Pai Rogério Vieira Dois Criados Guilherme Mendonça e Nicolau dos Mares O Bispo José Manuel Mendes O Leproso António Pires Barba-Azul Luis Miguel Cintra Guilherme Ricardo Aibéo Tomás Marcello Urgeghe Catarina Cláudia Andrade Rapariga da Tempestade (Segunda Esposa) Rafaela Santos Um Cruzado Marcello Urgeghe O Velho Criado José Manuel Mendes O Jovem Criado Ricardo Aibéo Signora Fulrnine Zita Duarte (actriz cedida pelo Teatro Nacional D. Maria II) Tuono António Pires Rapariga (actriz na cena do teatro) Rafaela Santos Pastor (actor na cena do teatro) Rogério Vieira Nova Esposa Rita Durão A Irmã Morena (Esposa) Sofia Marques A Irmã Loira (Ana) Rita Lello Os dois irmãos Guilherme Mendonça e Nicolau dos Mares O Músico Paulo Galvão Colaboração de: Álvaro Varanda, António Cunha, Carlos Avilez, Conceição Mendes, Maria do Carmo Vasconcellos, Nuno Júdice, João Mota, Júlia Buisel, Teresa Ferreira, Videoteca Municipal de Lisboa; Centro Cultural de Belém, Teatro Nacional D. Maria II e Companhia Nacional de Bailado Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 21/11/1996 28 representações Companhia subsidiada pelo Ministério da Cultura Apoio da Fundação Calouste Gulbenkian para a escrita e de AFAA (Association Française d’Action Artistique) para a colaboração com Christine Laurent Apoio RDP Antena 1, Rádio Nova, RTC Rádio Televisão Comercial ESTE ESPECTÁCULO La Peur Bleue Para alguns dos meninos que nós já fomos, a recordação mais longínqua pode ser esta gravura a preto e branco de Gustave Doré: vê-se aí o Barba-Azul precisamente no momento em que acaba de interrogar a “última esposa” sobre a chave que falta no molho que ele exibe. O seu olhar de papão, os olhos desorbitados, esperam uma resposta. A que deve precipitar a morte da “curiosa malvada”. A imagem, como um instantâneo, apanha o momento fatídico, eterniza um momento de espanto contagioso – é então que, à força de observar a gravura, restos de texto regressam à memória, na forma de vozes off femininas, como um cântico salmodiado: “-Ana, minha irmã Ana, não vês vir ninguém? - Não, só vejo o sol que empoeira e a erva que verdeja…” A história Barba-Azul, nesta nova versão, é também e ainda um conto para fazer medo. Própria para despertar os sustos infantis, o escuro, a devoração, o sexo, o sangue… Terrores fatais e deliciosos que se conjuram em rituais, encantamentos, repetições. Cada variante, provocando o espanto ou o riso. Os contos, tal como as histórias, são feitos para serem contados – a sua virtude reside em que, mesmo que seja a enésima vez que se ouvem, à sempre o estremecimento da primeira vez – misturam-se a lembrança desse medo primeiro, original, e o prazer levemente tranquilizador. Claro que é importante que a barba do herói seja azul, seria preciso poder-se experimentar une peur bleue (um medo terrível, em francês) – não se diz “j’ai une peur bleue”, a intensidade do choque não permite que no momento se escolha uma cor; em contrapartida diz-se “j’ai eu une peur bleue” (tive um medo terrível). O Azul parece, então, indicar que, mais tarde, é possível dar cor a este grande medo que se pode contar. Christine Laurent A Peça Para escrever BARBA-AZUL, parti do próprio texto do conto de Perrault. Dele mantive na íntegra os breves diálogos, que são os do fim da vida de Barba-Azul, e, a partir desses elementos narrativos que Perrault conservara de uma história antiga, procurei imaginar uma espécie de Idade Média de infância, cheia de silêncios, de fragmentos de vida repetitivos, de violência repentina e de inevitável familiaridade com os segredos mais assustadores da vida humana. Muitas vezes associada à história de Gilles de Rais - que está a ser reabilitado enquanto vitima de uma espécie de punição política pela qual se procurava associá-lo a uma lenda já existente do Barba-Azul - esta lenda não deixa de ter modelos nem exemplos: existe talvez em todos os países, e a nossa época, com a sua idolatria da quantidade, produziu muitas lendas mais terriveis que a do herói desta peça que descobre o prazer de fazer o mal quando percebe que terá a barba azul até ao fim dos seus dias. Sente este capricho da natureza ao mesmo tempo como uma marca aviltante que apresenta ao olhar dos outros e como um sinal de um destino que lhe daria a ele, Senhor e dono no seu castelo e vassalo directo de Deus, o direito de vida e de morte sobre cada esposa chamada a partilhar o seu segredo íntimo. Este segredo reside no facto da sua barba azul ser o centro e o princípio activo de todos os actos da sua existência criminosa. BARBA-AZUL é uma acção teatral onde cada cena é apresentada como uma variação de um conjunto de cerimónias, por meio das quais o espaço de tempo que nos é concedido para viver faz sinal à nossa memória de individuo surpreendido naquilo que o faz pertencer à espécie humana: o nascimento feliz de uma criança, a morte necessária dos pais, as refeições exaltadas que se dão e se suportam, a prova das cenas de cama e a sua estreita relação com a morte, porta proibida de uma câmara muito mais fria, os homicídios cometidos como terriveis brincadeiras de criança, até mesmo uma festa de teatro nesse teatro do castelo, que só foge a esta regra ao deixar o castelo. Todas estas cerimónias testemunham uma mesma natureza que regula a vida humana o melhor possível, mas são iluminadas tanto pela invisível culpabilidade de Barba-AzuI como pela que faz sentir aos outros pelo seu poder. Mas se ele abre - ou faz abrir - sempre uma mesma porta para precipitar as esposas para a morte, há outras portas que se abrem no desenrolar da peça, e sem que ele desconfie, sobre Barba-Azul, para além das quais, deixando de ser visto do exterior, deixa também de ser aquela pura força criminosa que corre também ela para a morte. A abertura temporária das Cruzadas que faz entrar a História nesta história, as invocações deste "carrasco de si próprio" às forças da natureza e a um Deus talhado à sua medida, tanto como o desenvolvimento rápido, fora do castelo, na noite de uma floresta pagã, de uma cena bem real a partir daquilo que no interior do conto de Perrault não passava de uma simples frase de anúncio - provavelmente mentirosa - do seu herói de que deixava o castelo a cavalo para melhor engodar a última esposa, voltando mais cedo que o prometido, estas cenas, apenas sugeridas ou agindo como efracções no processo cerimonial regular, acrescentam à monstruosidade invariável de Barba-Azul uma outra dimensão monstruosa, a nossa, a humana, quando já não tem força para ser inumana. Jean-Claude Biette
|