A Cadeira
de Edward Bond
Tradução Luis Miguel Cintra com a colaboração de Robin Jones
Encenação Luis Miguel Cintra
Assistente de encenação Manuel Romano
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos
Desenho de luz Daniel Worm d’Assumpção
Som Vasco Pimentel com Hugo Reis
Director técnico Jorge Esteves
Construção e montagem de cenário Abel Fernando e João Paulo Araújo com André Fradique
Montagem de luzes Rui Seabra
Operação de luz e som Rui Seabra
Guarda-roupa Emília Lima
Costureira Maria do Sameiro Vilela
Conservação do guarda-roupa Alice Madeira
Maquilhagem e cabelos Ana Ferreira
Contra-regra Manuel Romano
Cartaz Cristina Reis
Secretária da Companhia Amália Barriga
Interpretação
Billy Dinis Gomes
Alice Luísa Cruz
O Soldado Paulo Moura Lopes
A Prisioneira Catarina Requeijo
A Assistente Social Catarina Requeijo
Colaboração de Luís de Matos
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 16/06 a 17/07/2005
28 representações
Estrutura subsidiada pelo Ministério da Cultura/IA, Instituto das Artes
Não são cenas, como é costume no teatro. São seis “quadros”. “First Picture”, “Second Picture” e por aí fora. Foi assim que Bond passou para o palco uma peça que começou por escrever para a rádio. Voz e ruídos tornaram-se em imagens. E chegou o silêncio. Não são fotografias. Quem pode fotografar o futuro, se a peça se passa quando já não formos vivos, em 2077, no dia em que Bond, se vivesse, faria 143 anos? São fotografias falsas, são as imagens minadas que as nossas cabeças ocupadas hoje podem inventar. São o medo. O terror da sociedade em que vivemos.
O mundo todo reduzido ao mais exíguo espaço de tragédia. E reduzido ao espaço individual em que cada um é fechado e vigiado e programado. As frases são banais, curtas, quase sempre inacabadas. Nem a vida nem as palavras já são nossas. Mandam os serviços, a lei do cinzento, a destruição maciça e progressiva da humanidade pela própria humanidade, o sistema sem cara. A “democracia”? As crianças quando nascem são entregues aos “serviços”. Para formatação. Todos iguais, sim. Onde está o outro? Onde cresce o desejo? A invenção da felicidade? A alegria? A guerra das War Plays, da Trilogia da Guerra, passou para dentro de cada um. E veio de vez a solidão. A morte.
A escrita de Bond chegou à mais radical depuração. Pouco tempo de espectáculo. Poucas personagens, poucas acções, poucas frases. Alguns acontecimentos de teatro, imaginários e obviamente falsos, em que a nossa realidade está toda representada e toda pensada, e donde explodirá, por dentro dos silêncios, a mais violenta verdade. No corpo dos actores, humanidade, sim. Em quatro personagens e um fantasma de gente, Bond imagina, com terror, o mundo inteiro. E o espaço de uma exemplar excepção: um erro. Questões, como sempre, de mães e filhos. Porque é do ventre das mães que nasce a vida. Alice é ignorante, não tomou decisões, que no espaço destas imagens não há liberdade, mas viveu, humanizou-se. Enlouqueceu e humanizou-se a cada erro que fez: salvou Billy dos serviços, sem mesmo saber porquê, e criou um filho, e sem saber porquê quis levar uma cadeira à prisioneira, imaginou que seria sua mãe, e enforcou-se sem saber porquê e lançou Billy no mundo para morrer. Alice não é um modelo. Billy, o adulto menino que ela salvou do sistema e tornou em seu filho e que viveu 26 anos fechado num quarto, é um monstro, prisioneiro também, cresceu-lhe o corpo mas não é um homem. Billy é ingénuo e não conhece o mundo e levou Alice a descer à rua para conhecer mais mundo. Mas quando Alice desceu à rua para conhecer uma mãe, matou essa mulher e matou outro homem, um soldado que também podia ser seu filho e matou-se a si própria e matou Billy quando o quis libertar. Alice é ignorante. Não dá nome ao sistema. Alice nunca foi ao teatro, diria Bond. Alice não sabe que a humanização era impossível. Mas viveu-a. Sem saber como, conheceu a revolta, o desespero, a raiva, a solidariedade, o desejo de justiça. E no percurso de Alice está exposto o impasse trágico em que vivemos. Fala-se do nosso tempo nesta visão do futuro? Claro. Como aliás se explica nos sons da cidade que Billy ouve quando finalmente sai à rua, sons do nosso tempo. Com a invenção deste exemplo, faz-se a radiografia. Por absurdo, expõe-se o cancro. Em estado terminal. São agora gritos, as peças de Bond. Gestos radicais de denúncia. Peças de resistência. Manifestações do seu mais simples e profundo amor pelo ser humano, pela sua generosidade natural agora proibida.
É com gosto que voltamos a este autor “da casa”, que nos entregamos a tão meticulosa construção destas imagens humanas, à invenção de cada gesto, cada entoação, cada coisa dita ou não dita ou não pensada, só sentida, à duração de cada silêncio, à invenção desta violência, deste pesadelo em carne e osso, com gente verdadeira em espaços inventados. Este teatro, como nós, acredita no corpo, e nesse estranho e grande músculo, corpo ou alma, que se chama coração. E gosta do erro de Alice, a compaixão. Grandes trabalhos para os actores. Grande alegria de os ver nascer, grande alegria que ainda possam existir. Façamos este teatro enquanto é tempo. Dentro da nossa PRISÃO. Lembrando os companheiros, intérpretes de Bond também, que já acabaram a vida. Lembrando a Alda Rodrigues. Lembrando a Zita Duarte.
Luis Miguel Cintra