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Historial

36 - Vida e Morte de Bamba

Ficha Técnica

 

Vida e Morte de Bamba
de Lope de Vega

 

Tradução Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes

Colaboração filológica Luís F. Lindley Cintra

Encenação, cenário e figurinos Luis Miguel Cintra

Assistente de encenação António Fonseca

Adereços João Calvário

Assistentes para os adereços Maria da Luz Vilas Boas e Luís Mouro

Assistente para cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira

Montagem Fernando Correia

Ajudante de montagem Mário Correia

Guarda-roupa Emília Lima

Costureiras Antónia Costa, Maria Conceição Alves e Ofélia Lima

Iluminação Luis Miguel Cintra e José Eduardo Páris

Operação de luz José Eduardo Páris

Músico Jorge Laurentino

Direcção de cena Teresa Madruga

Produção Amália Barriga

Secretariado e bilheteira Fátima Madeira

Cartaz e colaboração para o cenário e guarda-roupa Cristina Reis.

Interpretação

Rei Recisundo Luis Miguel Cintra

Teodoreto, filho de Recisundo João Cabral

 

Godos:

Atanagildo José Lopes

Ervígio Fernando Mora Ramos

Teófilo Rogério Vieira

Rodolfo Luís Lima Barreto

Atanarico Fernando Heitor

Ataúlfo Gilberto Gonçalves

D. Branca, mulher de Ervígio Teresa Madruga

D. Elvira Cristina Cavalinhos

 

Bamba Cândido Ferreira

Sancha, mulher de Bamba Márcia Breia

Anjo Dinis Gomes

 

Vilãos:

Escrivão Rogério Vieira

Borujón Fernando Mora Ramos

Cardencho Luís Lima Barreto

Mollorido António Fonseca

Berrueco José Lopes

Morcón Fernando Heitor

A mulher de Berrueco Cristina Cavalinhos

 

Um caminhante Gilberto Gonçalves

O estampeiro Luis Miguel Cintra

O Papa Luis Miguel Cintra

Paulo, o grego António Fonseca

Alicão, rei mouro Luis Miguel Cintra

O batedor de moeda Gilberto Gonçalves

Um cidadão da Gótica Luis Miguel Cintra

Júlia, mulher donzela Teresa Madruga

Lourenço, criado de Bamba José Lopes

Um Biscainho José Lopes

Mujarabo, escravo mouro Luis Miguel Cintra

 

Apoio de Teatro Nacional de S. Carlos, Guarda-roupa de Belém, Antena 1, Teatro Nacional D. Maria II, Teatro Experimental de Cascais, O Bando, Paulo Brandão e Francisco Solano

 

Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 05/01/1989

44 representações

Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura

 

Este Espectáculo

Este espectáculo conta uma história. A história do “promêro rê qu'houve”. A história do rei Bamba. Uma lenda. Um camponês, por vontade de Deus, vontade a que, por uma vez, os homens obedeceram, tornou-se rei, ali, no meio do campo, quando uma vara floresceu. Este espectáculo conta uma história impossível. Mas conta uma história da História. Esta peça é uma crónica. Uma crónica que conta um disparate da História. Um disparate político. Foi este disparate que começou por nos interessar. E mais nos interessou quando pela mão de Lope passou de lenda a história exemplar, a conto moral.

Lope de Vega conta a história de Espanha. E defende um sistema político onde as classes existem, cada uma no seu lugar, onde acima delas se senta o rei, por vontade de Deus. É assim que o mundo está organizado e é assim que o seu teatro o organiza. O edifício onde se movem as suas “comédias” é esse. Mudem-se as histórias, passem mil personagens, mas é esta regra do jogo que vence, esta estrutura. E nela cabe o mundo inteiro, todos os tempos, todas as pessoas. Por mais doloroso, cómico ou trágico, ou paradoxal que seja preciso ser. E também a lenda do Rei Bamba lá cabe. Lope talvez até tenha gostado dela pelos problemas que põe a esta organização, porque por um momento, no espaço de uma vida, a desorganiza, a torna teatral, dramática. Rebenta-lhe as costuras. Mas o sistema é tão forte que é capaz de conter todas as contradições. Foram estas contradições que a peça de Lope expõe e faz incarnar num personagem verdadeiro, num homem, que, acima de tudo, nos interessam. Por causa delas, a “Comédia de Bamba” pode deixar de ser teatro do poder e tornar-se numa peça sobre o poder. O poder e a morte, claro, tema barroco. Um passo mais e tornava-se em tragédia já que aqui Deus quase se torna em Destino. Só que até Deus aqui se integra na lógica do poder real. E a vida e morte de bamba é comédia mesmo. Comédia até ao fim. Com aquela crueldade ou violência a que nos habituámos a chamar espanhola.

Bamba torna-se rei porque o rei morreu sem descendente em idade de reinar. E sem ser por descendência só alguém nomeado por Deus poderá ser rei. E tão bom como um rei só um santo. Santos são os camponeses que nem aspiram ao poder, que não competem com o rei, mas sobre quem o poder assenta. Assim Bamba se torna santo. E de santo passa a rei, para dar um exemplo. E para mostrar o que é um rei. Mas Bamba porque é santo e camponês não pode ser rei. Não sabe de política. Deus fez um disparate. Mas Deus corrige o seu erro e imola Bamba. Manda Ervígio envenená-lo e tornar-se ele Rei. Bamba torna-se mártir. Um rei não é um santo nem um pecador. É o Rei. E Rei só o Rei pode ser. Na renúncia de Bamba, na exemplaridade da sua obediência a um destino, estará, para Lope, talvez uma lição da comédia, mas lição para os pecadores, para o público, que não é o Rei. Bamba é um santo como todos terão de ser. É um tonto? É um inocente. E Ervígio, sendo um cobiçoso e um assassino pode ser rei pela mão de Deus? Pode. Quando e porque Deus quer. E Deus aí não errará? Pouco importa. A Espanha toda será castigada porque não ama Deus, como o último rei bom, o rei do princípio da peça, o bom Rei Recisundo, começa por dizer. Os mouros entrarão em Espanha e só Filipe II, quando os acabar de expulsar, voltará a ser bom rei. Deus aqui é a lógica do Estado. Nas peças de Lope trata-se dos negócios dos homens. Deus é um fantoche do teatro, é uma invenção.

E à lógica do Estado tudo está sujeito. Todos os personagens, todos os acontecimentos. A peça de Lope pode incluir tudo, todas as situações, todas as classes, toda a gente, desde que as não problematize. O mecanismo do estado que aqui se identifica com o mecanismo dramático, tudo engloba e integra numa lógica que é a do poder e que se chama de Deus e a que até a lógica de Deus está sujeita. Mas fosse Deus quem é e a vida e morte de bamba seria uma tragédia. Basta tomar Bamba como um verdadeiro personagem, dar a Deus a sua verdadeira natureza, tomar a sério, por exemplo, o afecto de Bamba por Paulo, a dor da traição, a solidão de Bamba e a sua morte, para que a lógica divina se torne incompreensível e o destino de Bamba se torne trágico. Afinal de uma contradição entre Deus e o poder se trata. Bamba não pode ser santo e rei ao mesmo tempo.

Foi essa contradição que quisemos mostrar. Quisemos que os personagens passassem de mero suporte de um texto a personagens em três dimensões. Nisso lutámos diariamente com o texto. Interessava-nos ver que absurdo resultaria da transformação destes personagens vazios, convencionais, em gente de carne e osso, em pessoas verdadeiras. Sem forçar, deixando que isso acontecesse quando já no texto existissem sinais de contradição. Foi assim que enlouquecemos o Bamba. A história da sua ascenção e queda passou a ser um processo de enlouquecimento. E, curiosamente, aí afastámo-nos de Lope e reencontrámos a crónica onde, depois do veneno, o Bamba enlouquece. Mas para nós, Bamba pessoa vulgar, debate-se inocentemente com uma lógica desumana em que todas as proporções se alteram e em que a violência do poder se instala por dentro, se converte, para a pureza de um inocente, numa desmesura de paixões e de valores morais que só o podem conduzir à loucura. O poder queima, mata. Diria o Lope: “Bamba, não queiras ser rei!” E nesse processo de loucura englobámos o mundo todo. Não é só Bamba que enlouquece. O sacrifício de Bamba dá a ver a loucura do mundo onde se insere.

Foi assim que quisemos tratar o fim da peça. Se lançamos no início o anacronismo total do guarda-roupa como brincadeira com as convenções teatrais e nessas convenções os sinais de poder ou de estrutura social (damas, reis, soldados, povo, etc.), é para no fim da peça revelar esses disfarces como marcas de loucura, como imagens desconexas para tornar em pesadelo, ou alucinação, esta crónica, mais este pedaço de História.

Os personagens aqui não são donos dos seus fatos. Vestiram-se com fatos emprestados por outros personagens, por outras peças, pela memória das representações sem conto em que estas histórias se contaram. Estão esquematizadas. Os fatos reduzem-nos a tipos eternos. Que importa que sejam godos? São funções dentro de uma lógica que desconhecem mas que tentam cumprir. E aí, curiosamente também reencontrámos o tom das representações populares tradicionais. Porque temos horror a um teatro tecnicamente perfeito, acabado, sem fissuras, feito à escala do dinheiro e não à dos actores, sim, mas também porque o nosso ponto de vista não é o de “Deus”. Aqui não é “Deus” que os veste. São eles que se vestem como pensam que “Deus” gostava que se vestissem. Tornam-se caricatos, mas são humanos.

Neste espectáculo expomos pessoas presas em disfarces e num dispositivo teatral rígido, pesado, esmagador, feio, pintado de dourado. Quisemos que fosse uma imagem dessa lógica que nos transcende mas que nos engloba a todos e preside afinal à comédia de Lope. A cortina de seda vermelha que, com o mesmo à vontade e a mesma pompa, desde sempre compõe os quadros dos reis e dos santos, aqui marca os espaços e faz avançar o tempo, indiferente a horas, a lugares, a interiores ou exteriores, movida por quem calha, ali posta não se sabe por quem nem a que despropósito, como se só ela reinasse. Não quisemos que neste espaço autoritário a vida estivesse ausente. Queria a comédia espanhola imitar a vida, mas sei que, ao imitá-la, a esmaga, torna-a em banda desenhada, afinal tal qual como na estrutura social acontece à vida com V grande.

 

Quando o rei de marfim está em perigo,

Que importa a carne e o osso

Das irmãs e das mães e das crianças?

Quando a torre não cobre

A retirada da rainha branca,

O saque pouco importa.

E quando a mão confiada leva o xeque

Ao rei do adversário,

Pouco pesa na alma que lá longe

Estejam morrendo filhos.

 

Neste fim de ano pessoano, é na indiferença em que o xadrez se move que vivemos, prisioneiros de um jogo em que a vitória é sempre a do tabuleiro mas em que participam desde o peão ao rei, passando pela torre, pelo bispo, pelo cavalo e pela rainha. É dessa indiferença que este espectáculo fala. Sem a ironia do poema. Sentimentalmente, dolorosamente. Numa ocasião em que as regras do jogo cada vez mais ostentam o seu triunfo, onde cada vez mais é o jogo que nos joga e já não têm cara os jogadores, quando talvez Deus jogue consigo, e a nossa irresponsabilidade quase nos minou, falamos ainda de política. O teatro, por natureza, a isso está condenado.

 

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de Duarte Belo, Paulo Cintra e Laura Castro Caldas ©





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