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Historial

76 - The English Cat

Ficha Técnica

 

The English Cat

Ópera de Hans Werner Henze
libreto de Edward Bond

 

Direcção musical João Paulo Santos

Encenação Luis Miguel Cintra

Cenário e figurinos Cristina Reis

Desenho de luzes Daniel Worm d'Assumpção

Pianista co-repetidor Nuno Lopes

Assistente de encenação Hugo Reis

Assistentes para o cenário e guarda-roupa Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos

Director de montagem Jorge Esteves

Construção do cenário João Paulo Araújo e Abel Fernando

Adereços Luís Miguel Santos

Guarda-roupa Emília Lima

Costureiras Antónia Costa, Conceição Miranda, Conceição Sameiro, Conceição Santos, Julieta Simões, Maria Barradas e Teresa Cavaca

Caracterização Ana Ferreira

Contra-regra Manuel Romano com a colaboração, no Porto, da equipa do Teatro Rivoli e, em Lisboa, do Teatro Nacional de S. Carlos

Montagem e operação de luzes Elias Macovela com a colaboração, no Porto, da equipa do Teatro Rivoli e, em Lisboa, do Teatro Nacional de S. Carlos

Montagem do cenário e maquinaria João Paulo Araújo, Abel Fernando e a equipa do Teatro Rivoli no Porto e do Teatro Nacional de S. Carlos, em Lisboa

Conservação do guarda-roupa Alice Madeira com a colaboração, no Porto, da equipa do Teatro Rivoli e, em Lisboa, do Teatro Nacional de S. Carlos

Secretariado para a produção do espectáculo Amália Barriga com a equipa do Teatro da Cornucópia

Tradução do libreto para trabalho e legendagem Maria Helena Serôdio

Interpretação

Lord Puff (gato), Presidente da Royal Society for the Protection of Rats (RSPR), e ainda um dos cantores da serenata Carlos Guilherme

Arnold, seu sobrinho (gato), e ainda um dos cantores da serenata Jorge Vaz de Carvalho

Mr. Jones, o prestamista (gato), e ainda Mr. Fawn (gato), membro da RSPR, o Juiz (cão) e um dos cantores da serenata António Wagner Diniz

Tom (gato) e ainda um dos cantores da serenata Luis Rodrigues

Peter, amigo de Tom (gato) e ainda Mr. Keen (gato), membro da RSPR, advogado de defesa (cão), Lucian (raposa), o Cura (carneiro) e um dos cantores da serenata Mário Alves

Minette (a gata) Ana Paula Russo

Babette, sua irmã (gata), e ainda a Lua e um dos jurados (pássaro) Suzana Teixeira

Louise (rata), membro da RSPR e ainda uma estrela e um dos jurados (pássaro) Ana Ferraz

Miss Crisp (gata), membro da RSPR, e ainda uma estrela e um dos jurados (pássaros) Ana Ester Neves

Miss Gomfit (gata), membro da RSPR, e ainda uma estrela e um dos jurados (pássaro) Helena Vieira

Lady Toodle (gata), membro da RSPR, e ainda uma estrela e um dos jurados (pássaro) Ana Serôdio

Mr. Plunket (gato), membro da RSPR , e ainda advogado de acusação (cão) e um dos cantores da serenata Rui Baeta

 

Porto: Teatro Rivoli. Estreia: 23/10/2000

2 récitas

 

Lisboa: Teatro Nacional de S. Carlos. Estreia: 04/11/2000

3 récitas

Co-produção do Teatro da Cornucópia, CulturPorto/Rivoli - Teatro Municipal, Teatro Nacional de S. Carlos e Orquestra Nacional do Porto com o apoio do Ministério da Cultura/IPAE, Instituto Português das Artes do Espectáculo e do Porto 2001/Casa da Música

Este Espectáculo

A produção desta ópera de Hans Werner Henze, autor fundamental no panorama da composição musical contemporânea, nasceu de uma iniciativa conjunta do Teatro da Cornucópia e da Culturporto/Rivoli - Teatro Municipal a partir de uma sugestão do maestro João Paulo Santos, do encenador Luis Miguel Cintra e da cenógrafa Cristina Reis.

Esta equipa artística colaborara já em produções de ópera do Teatro Nacional de São Carlos (L'ENFANT ET LES SORTILEGES de Ravel e DIDO AND AENEAS de Purcell, 1987, LE NOZZE DI FIGARO de Mozart, 1988), montara no Teatro da Cornucópia, em colaboração com a RTP, FAÇADE E THE BEAR de WiIliam Walton (onde o maestro pela primeira vez assumiu a direcção de uma ópera, 1990, e THE STRANGLER de Martinu - na Culturgest, 1996).

Foi, por um lado, a vontade de prolongar esta colaboração, e por outro, a natureza da própria obra de Henze, que levaram o Teatro da Cornucópia a interromper este ano a sua programação normal de teatro declamado para, com um apoio especial do Ministério da Cultura/IPAE, se dedicar à produção de um espectáculo de ópera. THE ENGLISH CAT é uma ópera com uma componente teatral fundamental e que parte de um libreto de Edward Bond, um dos grandes dramaturgos do final do século XX, por várias vezes levado à cena pela Companhia (Trilogia da Guerra: 1. VERMELHOS, NEGROS E IGNORANTES,2. AS PESSOAS DAS LATAS DE CONSERVA, 3. GRANDE PAZ, em 1987; A PRISÃO e DIA DE MARTE em co-produção com o grupo Quarto Período, em 1995). A esta ideia juntou-se a vontade da Culturporto/Rivoli - Teatro Municipal de co-produzir o espectáculo e de, assim, juntar os seus meios de produção aos de outras entidades para permitir a realização no Porto de ópera contemporânea interpretada por cantores portugueses, para o que contou com um apoio do Porto 2OO1/Casa da Música. A Orquestra Nacional do Porto aderiu ao projecto disponibilizando-se a garantir a sua execução musical. E também o Teatro Nacional de São Carlos se entusiasmou com a produção, propondo que, em Lisboa, as récitas se realizassem no próprio Teatro Nacional de São Carlos com a colaboração de toda a sua equipa, acolhendo a Orquestra Nacional do Porto e integrando a obra na sua programação.

Foi esta colaboração, que de certo modo consideramos exemplar, entre estas várias entidades e esta equipa artística, que tornou possível a produção de THE ENGLISH CAT e a apresentação, pela primeira vez em Portugal, desta ópera de Henze.

Teatro da Cornucópia

Culturporto/Rivoli - Teatro Municipal

Teatro Nacional de São Carlos

Orquestra Nacional do Porto

 

O LIBRETO E A MÚSICA

O libreto de Bond é bastante esquemático se o compararmos com outras peças do autor. Talvez o facto de se destinar a uma ópera tenha sugerido esta alternância de recitativos e canções - por tudo e por nada os personagens param e versejam. Henze diz-nos que até teve de cortar muitas das pequenas peças para chegar a uma proporção possível para uma ópera. A estrutura do libreto deu origem a uma ópera por números, mas não devemos aproximá-la do neoclassicismo de Cardillac ou The Rake's Progress. Estas árias lembram-nos talvez mais as canções de Weill para a Dreigroschen Oper. Só que, em 1980, a distanciação não precisa de ser feita à custa de jazz ou de outras danças, podendo utilizar toda a gramática da ópera de Mozart a Berg. Encontramos assim, basicamente, quatro tipos de música:

1 - as árias ou pequenos conjuntos, em que os personagens explicam os seus sentimentos;

2 - os conjuntos decalcados dos grandes concertantes de ópera, e que representam tudo quanto se pode esperar de excitante do encontro de doze vozes;

3 - os recitativos, próximos do recitativo accompagnato de Mozart, ou da escrita de um Strauss;

4 - os gestos musicais que descrevem acções físicas muito concretas: lutas, corridas, saltos.

 

A COMPOSIÇÃO

O primeiro contacto de Henze com a música dodecafónica deu-se em 1943, quando da estreia alemã de LE VIN HERBÉ de Frank Martin. O adolescente ficou surpreendido com o que ouvia. Afinal, aquela música, denegrida pelos nazis, era tão suave e expressiva. Quarenta anos mais tarde, ao escrever a série fundamental do seu ENGLISH CAT ainda são critérios de afecto que orientam a escolha dos intervalos. Melancólicas terceiras menores, diabólicos trítonos, que se transformam em operáticos acordes de sétima diminuta; entre sentimento e perversão, portanto, tal e qual o clima da peça. Tudo sairá desta série cristalizando-se em temas e acordes, que percorrem a partitura. Tal como Hindemith, Henze não foge às consequências tonais e politonais da sua escrita dodecafónica, fazendo-nos sentir, assim, herdeiros de toda uma herança musical.

 

A ORQUESTRA

As vidas destes animais são acompanhadas, comentadas, partilhadas por uma orquestra de câmara alargada, muito no género da que Strauss inventou para a sua ARIADNEJá em NAXOSalguns instrumentos estavam associados a personagens definidas. Henze, alarga o esquema straussiano fazendo da própria orquestração uma delicada e subtil trama temática. Temos assim o piano como o representante da RSPR; não o instrumento nobre e virtuosístico, mas o móvel de salão de qualquer sociedade. Lord Puff faz-se acompanhar ao órgão, religioso no som, mas de escrita propositadamente pianística, como que a explicar que a religião está a ser utilizada para fins da sociedade. Arnold serve-se do heckelphone que todos associamos a SALOMÉ, consequentemente, a alguma perversidade. O Dr. Jones é ridículo e sinistro como o seu clarinete-contrabaixo. O juiz esforça-se por ser doce e melodioso, fazendo o contrabaixo exprimir-se em cantilenas agudas. Babette é impulsiva e sentimental, até um pouco agreste tal como as violas e os oboés. Minette toca citara, instrumento popular “saloio” da Alemanha, e é melodiosa e inocente como os violinos e as flautas, tal como as heroínas italianas de ópera do século XIX. Tom explora a amplitude de registos dos dois clarinetes, do brincalhão ao sentimental.

Alguns dos números da partitura são pequenos concertos para instrumento-solista e orquestra, muito no género das “kammermusik” de Hindemith.

Mas não é por acaso que esta ópera é para cantores e instrumentistas. A orquestra explica e comenta em pormenor cada situação: a última ária de Tom, em que ele se revela amadurecido, utiliza em vez dos dois clarinetes, dois nobres fagotes como que a explicar a sua evolução psicológica ou até a orquestra é dividida em vários grupos com funções diferentes. Na entrada de Minette para o casamento existem três planos: o principal acompanha as vozes do hino nupcial, os violinos marcam delicadamente a presença de Minette, uma outra parte da orquestra canta algo de triste como que a exprimir o sentimento do espectador perante a situação. Seria fácil multiplicar os exemplos, pois a partitura é um mundo de ideias e situações absolutamente fascinante.

 

NOTA PESSOAL

Começámos os ensaios musicais em Janeiro. Em Julho, durante quinze dias, e com toda a força, depois de um mês de férias, iniciaram-se os ensaios de cena, cada um transportando com esforço as enormes partituras de canto e piano, e eu, amaldiçoando a editora Schott, que podia ter dividido a descomunal partitura da orquestra em dois volumes, andava de mochila com a minha gata às costas. A nossa história para doze cantores, pianista, cenógrafa, encenador e maestro foi-se vivendo...

Vinte anos apenas depois da sua estreia, esta música é-nos muito moderna. Não é fácil penetrar num universo que ainda não teve tempo de amadurecer, de se tomar natural. Os músicos são treinados para poder reproduzir qualquer música sem a perceber. Com muitas peças contemporâneas, já me aconteceu não perceber nada do que me era solicitado pelo compositor. Às vezes tenho a sensação que, efectivamente, nada nos é solicitado. Não é felizmente o caso desta partitura. Sente-se que tudo tem uma função, as dificuldades diminuem quando percebemos o porquê de uma intenção, de um ritmo. Durante os ensaios, o texto ajudava a perceber a música, a música a clarificar as intenções do texto e para mais Henze é um compositor que não esquece o passado. Toda uma herança musical operática, afectiva, está presente neste ENGLISH CATA escrita vocal requer um grande virtuosismo de todos os cantores; não há papéis menores. apenas alguns mais longos. No entanto, tudo é escrito com uma enorme naturalidade, e há como uma alegria em vencer as dificuldades de cada passagem. Tenho cada vez mais a sensação de que a partitura é inesgotável de subtilezas e intenções, e aquilo que pode parecer confuso ao princípio torna-se cada vez mais claro. Creio que daqui a vinte anos será apenas uma partitura trabalhosa, quando o tempo se encarregar de a tomar nossa. Para já, ainda nos é muito moderna.

 

APARTE

Li com espanto numa Folha Musical de Março de 2000, enviada pelo Sindicato dos Músicos aos seus sócios, uma critica à escolha de uma obra de Henze por este ser “um compositor musicalmente reaccionário”. E o que será que isto quer dizer? Reaccionário por opiniões políticas, por não escrever tão “radical” como outros, por ter composto para os grandes teatros de ópera e ballet numa altura em que isso era mal visto, ou por alguma razão que desconheço? Mas os senhores do Sindicato devem ter estudado o problema a fundo para assim o afirmar.

João Paulo Santos

 

ENCENAR THE ENGLISH CAT

Encenar uma ópera do reportório, feita e refeita, cantada já por tantas vozes famosas, mais ou menos interpretada por tantos mestres ou maestros e tantas vezes re-encenada ao gosto de hábitos, modas e tradições, é sobretudo confrontar-se com um passado cultural. Será talvez, mas nem sempre nos melhores casos porque a tarefa é quase impossível ou mesmo tonta, já que a tradição cria memória e a cultura é isso ainda bem, tentar inventar um moderno e inédito contacto com a partitura original fazendo tábua rasa do já feito. Muitas vezes e infelizmente, o trabalho reduz-se a dar novo embrulho ao bom-bom. Mais inteligentemente, será voltar a ler, sim, a partitura original mas ler também e criticar a tradição que a essas obras já se colou e que também a elas se cola nas nossas cabeças. Uma tarefa difícil mas entusiasmante, um jogo complexo do presente com o que a História nos continuou a trazer, mas que tantas vezes resulta em disparate quando, para criar novidade e em desespero, se perde já todo o contacto verdadeiro com a obra e se inventa aberração. Mas o que pomos em cena é sempre mais uma leitura dessa obra antiga. Com o reportório talvez já seja impossível pôr em cena a obra mesmo.

Mas THE ENGLISH CAT é uma obra recente. Existe uma única gravação que não será exemplar. Não há ainda, ao que julgo, nenhuma encenação que tenha ficado como referência. Os dois autores, compositor e libretista, estão vivos e muito têm eles ainda a dizer-nos a nós, homens do seu tempo. O trabalho com THE ENGLISH CAT não podia ser o mesmo do costume. Abordámos THE ENGLISH CAT como quem lê pela primeira vez, tentando ouvir uma partitura desconhecida, inventando uma interpretação, querendo fazer chegar ao público uma coisa nova, tentando humildemente sermos intérpretes de dois autores mais do que autores de uma versão. É uma tentativa.

Mas o que julgámos encontrar foi, e não é surpreendente, será antes muito inteligente, também uma atitude de quem não deixa nada para trás, foi também, como quando se encena o reportório, um jogo moderno com o passado, só que não feito por nós, intérpretes, mas escrito já na partitura, um jogo com a tradição, com a história do teatro, com a própria ópera antiga. Muitas vezes julgámos mesmo ouvir uma colagem de citações musicais. Bond diz que escreveu uma comédia e Henze fala de opera buffa. Coisas que nos trouxe a cultura.

Reconhecemos logo em THE ENGLISH CAT o jeito da comédia. É verdade que a história acaba mal para os dois jovens amantes que não se casam no fim, perdida que ficou a vida para sempre, mas para a RSPR acaba festiva a seu modo, uma vez restabelecida a ordem, por mais sinistra que seja, que a inocência veio perturbar. Reconhecemos a estrutura de uma comédia (quantas vezes me lembrei de A MULHER DO CAMPO de Wycherley), e a estrutura em recitativos, árias, duetos, tercetos, concertantes, lembra a da ópera cómica que conhecemos. E como é costume na comédia, há uma ordem social que a intriga altera durante a peça e que é reposta no fim. Só que esta opera buffa é tão estranha, ou tão nova, que a sua alteração da ordem pouco tem de cómica e acaba por nos fazer chorar (ou será que nos quer revoltar?). Reconhecemos a força da intriga, os mesmos amores contrariados, o padrão das funções das personagens, um velho descendente solteiro do pater-famílias, a ingénua, o apaixonado, o mau, e até o gosto pelos tipos sociais, o juiz, o doutor aldrabão. Mas qualquer coisa soa a estranho. Não há, por exemplo, criados e patrões nesta ordem burguesa. E nenhum Fígaro triunfa. A luta de classes passou para dentro, se há luta de classes é sem ninguém saber. O mundo todo é o dinheiro. Não se sabe quem manda. Mas há ricos e pobres, e os apaixonados no mundo dos ricos não podem viver, para eles ainda há desejo e o seu corpo inculto vem estragar a engrenagem, no mundo do dinheiro não têm lugar. Se aparecem as formas da velha comédia elas são aqui pervertidas. As situações como que se invertem ou corrompem porque a ordem social nesta monstruosa sociedade não coincide com a ordem natural e a moral é uma fachada. O amor não está previsto nesta ordem e não coincide com o casamento. O velho que quer casar não pode ser ciumento. A ordem é o dinheiro e é imposta à força. A ingénua não é ingénua, é inocente, e não pode aprender. O apaixonado não pode existir, não sabe conquistar o poder. A vida fugiu. E na música desta comédia parece que há sempre qualquer coisa que volta e meia salta dos carris e introduz uma irónica suspeita de tragédia que, aliás, até tem fundamento no permanente interrogar da noção de destino (fate) com que já no libreto as personagens esbarram a cada revés da sorte. O que Tom canta no momento chave de toda a ópera, depois de uma amarga aprendizagem, antes de ser assassinado, mas ao contrário dos heróis da tragédia antiga, não é: The fate of man is man? Baseia-se a comédia numa ideia de ordem. Mas nesta comédia, depois da desordem, não pode haver reconciliação. E é como se toda a ópera nos dissesse: a comédia não é possível. Estas histórias já não são comédia. Só vontade de mudança. THE ENGLISH CAT brinca com a comédia mas não é, não pode ser, uma comédia. E porquê? Talvez porque nesta comédia que adopta ou revê os mecanismos da desordem cómica, a desordem social não é criada pela intriga, é a própria ordem, é a própria sociedade, e é ilógica, irracional, é o poder do dinheiro, é contrária ao próprio Homem. Henze diz que podia chamar-se, citando a Marcellina do FÍGARO, L'argent fait tout.

Mas é então trágico o destino dos nossos dois heróis? Minette, a inocente, e Tom, o simpático malandro, descendente dos Arlequins, são vítimas sem solução? Só podem morrer? A lei da RSPR substitui o destino num mundo que já só tem Deus por mascarilha? Não, Minette e Tom são simplesmente ignorantes. Caem nas malhas da (in)justiça. Não sabem, não vêem, que o poder apodrecido do dinheiro só substitui o destino graças a uma corda à espera de os atar num saco atirado ao fundo do Tamisa ou a uma faca pronta para lhes ser espetada nas costas. Os nossos heróis aprenderam tarde demais, à custa da vida, não são heróis, são tontos. THE ENGLISH CAT não é também uma tragédia. É uma triste comédia. Bem vistas as coisas o assunto de THE ENGLISH CAT não é a história de Tom e Minette. E não são eles, aliás, que fecham a ópera. Não acaba tudo com a morte de Tom e a visita do fantasma de Minette, já seu anjo professor para além da morte. Uma outra aprendizagem se fez, a de Louise, a ratinha amestrada que aprende a reconhecer o inimigo e a roubar. Ela aprendeu a tempo, aprendeu pelo menos quem é. Conhecer, para Bond, é o único primeiro passo. Mais que o inimigo é nossa inimiga a ignorância. Louise ficou a saber que não é um gato. E que é oprimida. E talvez aprenda a lutar. Ou pelo menos a sobreviver. Esse é o final da ópera, por ironia, com a frase menos musical: o áspero Screech, screech! de Louise, que acaba por tomar o lugar de qualquer canção ou, mais terrível ainda, de qualquer conjunto coral.

Mas Bond queixou-se do seu compositor. Onde queria ver uma comédia ouviu um drama complacente (a sympathetic-drama). Bond escreveu um libreto onde, em tom de comédia ou quase de história infantil, revisita todo o seu teatro. Com uma desenvoltura de quem conhece de cor todas estas questões e as problematizou já noutras peças com uma violência e uma complexidade que aqui lhe permite tratá-las quase como uma brincadeira de escola. E Henze também brinca e brinca não só com o libreto como com a própria ópera. Mas Henze talvez vá mais longe. Nesta revisão da opera buffa, por mais desumanizados que sejam estes animais, a música de Henze dá-lhes uma terceira dimensão e resgata-os do seu esquematismo inicial para os devolver a toda a sua humanidade perdida. Minette também é uma Mimi. Como na ópera, a música de Henze tem compaixão do seu soprano, vibra com o barítono, apaixona-se pelo destino de Tom e Minette, reconhece em Minette a irresistível sedução da sua candura e da sua “coloratura”, empolga-se com a força vital de Tom e o poder masculino da sua voz, diverte-se com os agudos dos tenores e os inaudíveis graves dos baixos, entusiasma-se com a alegria dos conjuntos e com o jogo dos naipes (Babette podia não ser meio-soprano?). E há uma alegria que não é já a da feroz comédia de Bond, se é que aí ela existe, mas que se traduz numa constante mudança de registo, no gosto pela colagem, na graça das referências musicais, na fantástica capacidade de fazer teatro com as notas, os ritmos e a cor dos instrumentos, na capacidade de imaginar por música os tempos psicológicos das personagens e o ritmo da acção que nos lembra muito as óperas de Mozart. Um prazer do puro teatro musical. Mas mais do que isso, Henze traz também ao libreto de THE ENGLISH CAT uma qualidade poética, ou para melhor dizer, lírica, que em parte vem ocupar aquele espaço deixado em aberto à consciência do espectador por um texto destes, a sua música é em si já a voz crítica que um libreto destes vem pedir. A ópera de Henze, mais do que alguma desejada raiva, parece-me trazer a THE ENGLISH CAT alguma melancolia que Bond talvez não esperasse. Se Tom e Minette aprendessem tinham força para mudar o mundo? É facto que, por mais que o destino do Homem seja o Homem, o mundo continua por mudar. E por mais que as Louises aprendam a roubar há sempre muita vida que entretanto vai ficando por viver.

Encenar a ópera de Henze será, parece-me, tornar evidente o jogo com as convenções teatrais, contar esta história exemplar e clarificar a sua escalpelização, que a própria construção musical ajuda, deixá-la afastada da empatia com o espectador, encontrar o espaço para que as próprias personagens problematizem a sua acção com a interpelação directa ao público, mas também e ao mesmo tempo, e isso é o mais difícil, não apagar a espessura psicológica que a música confere a estas personagens e muito menos essa tristeza que a pouco e pouco vai minando a comédia até chegar ao horror, que mais do que na leitura do libreto, creio ouvir já na partitura. É tentar, mais do que é costume, ler o próprio diálogo da música com o texto que lhe deu origem. Encenar esta ópera não foi só inventar um mecanismo e com ele brincar, encontrar a sua poética, dar forma à ironia da representação cénica das personagens, descobrir os tempos, os movimentos e as colocações das figuras, foi, em diálogo com o maestro e com os cantores, ajudar a construir uma interpretação que desse corpo e unidade a uma composição descontínua que é, afinal, essa voz poética. Só era possível assim. E esse trabalho, como poucas vezes pode acontecer neste mundo de espectáculos dominado também pelo dinheiro, foi aqui possível durante uma longa e cuidadosa preparação cénica e musical feita em conjunto e foi um enorme prazer. Porque aqui cantar ou tocar não é um ofício técnico, é também pensar, tomar posição, decidir, tornar inteligente a emoção.

O espaço que inventámos é uma tentativa de também brincar com o já sabido, de rever a convenção e de usar também cinicamente alguns lugares comuns tradicionais e de um teatro "brechtiano" para contar no palco uma história. De forma crua, quase de bastidores à mostra, e cruzando esse jeito com a ideia de uma permanente exposição coral, inclinando o chão para a orquestra e a plateia, distorcendo e forçando o trompe-l'oeil, espalmando a profundidade para que da música, sim, nasçam corpos aos cantores. Quisemos que vivessem personagens.

Que são homens ou animais? THE ENGLISH CAT, como aliás as Peines de Coeur d'une Chatte Anglaise, o conto de Balzac de que partiu, comédia ou não, é uma fábula. Passa-se como é costume nas fábulas, no tempo em que os animais falavam. (E cantavam.) Esta é uma história de animais. Mas onde se passa esta história? Em casa da Senhora Halifax, ausente ou escondida. Quem é? Estes são os gatos dessa velha? Diríamos que sim. Mas estes gatos parecem pessoas. Em casa da Senhora Halifax os gatos fazem como vêem fazer os homens, imitam os seus comportamentos. E de facto, quase nunca, ao contrário, por exemplo, do que acontece em L'Enfant et les Sortilèges, por onde há já muitos anos começámos estas experiências de encenação de ópera, nunca a música nem o libreto se interessam aqui por sugerir os actos ou os sons dos animais. Aqui, como nas fábulas, os bichos fazem de homens, agem como os homens, vestem-se como eles e só são bichos para que neles possamos ver melhor o que fazem os homens. Que fazer? Fazer de homens ou de animais? Com máscaras ou caras de pessoas? São os cães que são os senhores da Justiça ou os senhores da Justiça que são cães? A raposa é o Lucian ou o Lucian é uma raposa? A ovelha é um pastor ou o pastor é uma ovelha? Foi muita a hesitação, sabendo que nada trazia de importante. O que tínhamos perante nós eram cantores que faziam de bichos que representavam homens. E é de comportamentos humanos que toda a ópera nos fala. Não se espantem portanto se nestes cantores pouco restar dos bichos, ou se virem estes bichos representar tão bem, vestidos assim, um pouco como bonecas de cartão, é certo, mas mexendo-se como pessoas, que não fossem os rabos e as orelhinhas de gato ou de rato ou de cão e uma ou outra máscara a sinalizar a bicharada e ninguém diria que eles eram animais.

Seja como for, a grande questão desta falsa comédia é, como sempre no teatro de Bond, a desumanização do Homem que neste mundo do dinheiro passou a irracional, mais irracional  na sociedade em que vive que os bichos que os imitam na casa da Senhora Halifax e que só são feras quando adoptam os comportamentos (des)humanos do poder. A própria Senhora Halifax que lhes dita as leis não será também felina? Destas coisas nos fala esta ópera que sonhou ser popular.

 

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de Alexandre Sanfins ©





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